Covil

Covil
(Foto: Reprodução Banksy/ Arte Revista Cult)

 

Lugar de fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de outubro de 2020 é “liberdade”.


Março de 64. Não há como esquecer a data. Também, porque foi quando entrei para o clube dos passarinheiros da capital.

Para desgosto de Lia, companheira de quase 50 anos (que Deus a tenha), foram muitas as gaiolas e os pássaros presos nas casas em que moramos. Mas hoje, velho e doente, neste apartamento escuro, só tenho o meu curió.

Nos domingos pela manhã eu gostava de caminhar até a Praça do Sol, levando comigo a gaiola. E lá encontrar o Agenor, amigo de clube, também com o seu curió. Sentados na mureta, falávamos sobre a semana, a última notícia sobre violência, futebol, qualquer assunto menos política, enquanto os nossos pássaros, felizes com o ar puro, as árvores, e a paisagem diferente do prego e da parede, disputavam um com o outro qual cantava melhor. O Agenor, viúvo como eu, sempre foi um bom companheiro de prosa.

Então, veio a quarentena e foi quando tomei a decisão. O confinamento de meses num apartamento pequeno, do quarto para a sala, da sala para a cozinha e da cozinha para o banheiro, sem os domingos na praça, sem mais nada e só a televisão ligada, quase me matou.

A pandemia diminuindo, a praça liberada, e logo de manhã, no primeiro domingo de sol, voltei lá com o meu curió. E assim que pisei na grama: ah, que sensação plena de liberdade! Ah, só Deus sabe como eu me sentia feliz por continuar vivo. Não vi o Agenor, liguei para ele, o telefone tocou, tocou e tocou. Tudo bem, disse para mim mesmo, ele não iria acreditar.

Abri a porta da gaiola e disse assim para o meu curió: agora eu sei o que você sente, agora eu sei. Me desculpe. E como me arrependo daqueles anos todos, de tantos pássaros presos nas gaiolas. Lia, minha boa Lia, você estava certa, meu amor, me desculpe.

Meu curió desceu do poleiro, de outro, mas parou diante da porta. Por um momento, me olhou de um jeito estranho, como estranhei o Agenor não atender a ligação. Então, ele voltou para o poleiro.

Afonso Machado, 67, é publicitário e
mora em Embu-Guaçu. Tem se dedicado
cada vez mais a ler e escrever livros.

 

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