A COVID-19 e o tempo das reformas íntimas

A COVID-19 e o tempo das reformas íntimas
(Foto: Arte Revista Cult)

 

Lugar de fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de dezembro de 2020 é “renascimento”.


Difícil falar em renascimento nos tempos em que vivemos, com a espada constantemente sob nossas cabeças, em tempos de medo, de descrença, de preocupação, de luto pelas inúmeras perdas, de ansiedade pelo por vir… Como será que ele vem? Será que estou com covid? Será que vou sobreviver? Quais sequelas esta doença vai deixar em mim? Que marcas vou ter destes tempos insanos?

Cada novo dia é um dia para, mais do que nunca, agradecermos por estarmos vivos.

O Brasil vive uma situação peculiar: já convivíamos entre nós com a epidemia causada pelo vírus que se instalou no Palácio da Alvorada e que vinha contaminando a nossa democracia, uma doença tão letal quanto o coronavírus. Ela causa discórdia, a desavença, a intolerância, a repulsa pelo que é diferente, a indiferença pelo próximo, ela desperta (ou reforça) o preconceito contra os gays, negros, nordestinos, pobres e mulheres. Ela se propaga através das fake news e infecta deixando traços de fascismo.

Pena que nós, brasileiros, fomos atingidos em cheio pela pandemia do covid-19 ao mesmo tempo em que já lidávamos com este praga. Agora, o vírus brasileiro, em convivência com a covid-19, sofreu uma mutação que nos faz vomitarmos frases do tipo: “e daí? Quer que eu faça o que?”, “é só uma gripezinha”, “se pegar, pegou”, “todos vamos morrer um dia”, “essa conversinha de segunda onda” ou “eu não dou bola para isso”… angústia define.

Vivemos atualmente imersos em nosso medo, em companhia diária com a nossa ansiedade. O coração bate numa arritmia constante, as mãos suam, você fica gelado, às vezes lhe falta o ar, tonturas, pensamentos que travam em coisas que você sabe impossíveis, mas que, mesmo assim, você tem medo que aconteçam.  Se concentrar torna-se algo momentaneamente impossível.

Fomos forçados a nos adaptarmos ao novo normal, a convivermos conosco, com o nosso lado bom e ruim e a nos modificarmos. Tarefa constante e exaustiva nesses quase 10 meses de enclausuramento social. Sem contar o fato de, aqueles que respeitam as autoridades sanitárias – e não no “diz-que-me-diz” das mídias sociais – e fazem o isolamento de verdade, serem alvos de críticas e julgamentos de amigos e até de parentes, justamente já contaminados pelo vírus tupiniquim que dissemina a frase do “se pegar, pegou” e minimiza a importância da sua vida e da vida das pessoas que vivem ao seu redor ou que você tem contato direto, como se todos, indistintamente, fossem impermeáveis ao vírus pandêmico.

Obviamente que não posso dizer por todos. Só posso dizer por mim, a partir da minha experiência de vida, da minha vivência, que me obrigaram a me modificar, de alguma forma e em alguns pontos.

Dizem que uma situação de grande estresse nos faz renascer, como um acidente de trânsito, por exemplo. E que melhor situação do que uma pandemia?

A pandemia me ensinou a dar mais valor à vida. Hoje, quando acordo e abro os olhos, imediatamente agradeço a Deus pela oportunidade de mais um dia de vida e por estar com saúde. Agora, me conecto mais à natureza: paro em frente à janela e sinto os raios do Sol me banharem com o calor gostoso da manhã; olho o céu e observo com mais atenção o dançar das nuvens; cultivo sementes de árvores frutíferas; comprei uma composteira para “reciclar” os alimentos que consumo e devolvê-los ao solo, “alimentando”, assim, minhas plantas e me maravilhando com o movimento cíclico da natureza. Mas, principalmente, dou mais valor às pessoas que estão ao meu lado, que realmente se importam comigo, que me mandam mensagens perguntando como estou, que fazem planos de nos reencontrarmos num momento pós-pandemia e que respeitam meu posicionamento e atitudes em relação ao vírus, ao invés de me condenarem por usar máscara ou por respeitar o isolamento.

Aprendi que não posso sofrer pelas pessoas que eu costumava ter em grande consideração, inclusive parentes, e que simplesmente fecham os olhos deliberadamente para o perigo de se aglomerarem, de frequentarem festas ou eventos, que ignoram conscientemente meus alertas de que o vírus ainda está entre nós e que precisamos continuar nos cuidando.  Isso me faz mal e o distanciamento voluntário destas pessoas é o único remédio capaz de cuidar da minha saúde mental.

Não desejo o mal de ninguém, mas àqueles que não conseguem me respeitar, respeitarem quem eu amo, que não conseguem perceber que amar, nos tempos atuais, é muito mais do que meramente abraçar e beijar, é agora, principalmente, se distanciar do perigo (leia-se, do vírus) e não colocar outros em riscos, destes, meu distanciamento não é aquele recomendado pelas autoridades sanitárias ou pela OMS, mas sim, pela minha consciência e pela vontade de não me violentar (ainda) mais apenas para não desagradar.

Nasceu um novo “eu”, ainda em fase de testes, ainda em constante ajustamento, mas satisfeito com esta nova “persona” que está surgindo deste mar de incertezas e medos e meu desejo sincero é que você faça o mesmo para você. Seja feliz!

Guilherme Dias Trindade
é advogado e reside em Santos-SP.

 

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