CORONELISMO INTELECTUAL

CORONELISMO INTELECTUAL

 

Podemos chamar de “coronelismo intelectual” a prática autoritária no campo do conhecimento. Este campo é extenso, ele começa na pesquisa científica universitária e se estende pela sociedade como um todo, dos meios de comunicação ao básico botequim onde ideias entram em jogo. Coronelismo intelectual é a postura da repetição à exaustão de ideias alheias. A reflexão só atrapalharia, por isso é evitada.

Encarnação de prepotente eloquência, o paradoxo do coronelismo é alimentar uma ordem coletiva de silêncio em que o debate inexiste, o culto da verdade pronta ou da ignorância é a regra, bem como a apologia ao gesto de falar sem ter nada a dizer que culmina no discurso tão vazio quando maldoso da fofoca, versão popular do eruditismo. Não há muita diferença entre a mesa de bar e a mesa redonda dos acadêmicos parafraseando qualquer filósofo clássico apenas pelo amor ao fundamentalismo exegético.

Enquanto todos falam sem nada dizer ajudados pelo jornalista que repete o que se entende pela sacrossantificada “informação”, mercadoria da contra-reflexão atual, os coronéis podem comentar que os outros é que não sabem nada e praticar o “discurso verdadeiro” em seus artigos estilo “mais do mesmo”, moedinha cadavérica com que se enche o cofrinho das plataformas de medição de produtividade acadêmica em nossos dias.

O coronelismo intelectual infelizmente segue forte na filosofia e nas ciências humanas, na verdade dos especialistas, tanto quanto na dos ignorantes que se separam apenas por titulação ou falta dela. Professores e estudantes, sábios e leigos, todos se servem metodologicamente dos frutos dessa árvore apodrecida. A prática do pensamento livre que se autocritica e busca, consciente de sua inconsciência, seu próprio processo de autocriação talvez seja a contraverdade capaz de cortá-la pela raiz.

Intelectual serviçal

Eis a cultura do lacaio intelectual, do bom serviçal sempre pronto à reprodução do mesmo. Nela a boa ovelha especialista em assinar embaixo as verdades do senhor feudal que um dia as emitiu num ritual de sacralização já não é fácil de distinguir do lobo. A semelhança entre o puxa-saco, o crente e o líder paranóico que o conduz revela a verdade do mimestismo. Os seguidores dos líderes de rabinho entre as pernas latem para mostrar que aprenderam bem o refrão.  Abanam as asas em redor da lâmpada esperando que ela também fique onde está, do contrário, não saberiam o que fazer.

As consequências do coronelismo em um país de antipolítica e anti-educação generalizada como este Brasil é algo ainda mais grave do que o medo de pensar. É o fato de que já não se pensa mais. A ausência de debate não é medo de expor ideias, mas falta delas. Inação é o corolário da impossibilidade de mudar, porque o campo das ideias onde surge a vida já foi minado. O coronel ri sozinho da impossibilidade de mudanças, pois ele ama a monocultura enquanto odeia o cultivo de ideias diferentes ou de ideias alheias. O autoritarismo intelectual não é feito apenas de ódio ao outro, mas da inveja de que haja exuberância criativa em outro território, em outra experiência de linguagem. Conservadorismo é seu nome do meio.

Coronelismo não é simplesmente a zona cinzenta onde não podemos mais distinguir o ignorante do culto, mas a política generalizada introjetada por todos – salvo exceções – pela letal dessubjetivação acadêmica da qual somos vítimas enquanto algozes e que, no campo do senso comum, surge como robotização e plastificação das pessoas entregues como zumbis aos mecanismos do nonsense geral que, é preciso cuidar, deve ser aparentemente desejável pela liberdade de cada um.

Contra a escravidão intelectual somente um contradesejo pode gerar emancipação. A prática da invenção teórica, a liberdade da interpretação e de expressão nos obrigam a ir contra os ordenamentos da ditadura micrológica do cotidiano em que a lei magna reza o “proibido pensar”. A direção como se pode ver, parece que só se encontra, atualmente, no desvio dos caminhos dados.

(12) Comentários

  1. Eu já estou criticando o meio acadêmico aqui no Brasil há muito tempo, não sei se é assim em outros países. As universidades por aqui parecem que estão se especializando na glosa e no comentário. Estamos fabricando comentadores e não pensadores. E ai de quem não colocar “citações” em seus artigos e quejandos, logo são acusados de pretensiosos só pq ousaram pensar por si mesmos. O operário do conhecimento só reproduz, não cria. Precisamos de pensadores, e parece que a academia não está muito interessada nisso.

  2. Sem dúvida, mais um ótimo texto, e que possui grande intertextualidade com o “Fascismo Potencial” na edição anterior. Aliás, preciso e oportuno, pois acontecem importantes congressos internacionais com intelectuais prestigiados em São Paulo.
    Beirando o fatalismo: mas o que fazer em uma sociedade patriarcal e despolitizada que “forma cidadãos” para obedecer e não pensar.
    Retomando, gostaria de destacar dois fenômenos concomitantes ao descrito no texto: o de autores consagrados e que não são tidos como clássicos, no âmbito internacional, como Slavoj Zizek e Bernard Lahire que possuem muitos “seguidores”, e no âmbito nacional, nomes como de Lilian Moritz Schwarcz e Laura de Mello e Souza que compõem a Intelligentsia Tupiniquim, para citar apenas alguns nomes. Muitas vezes indispensáveis à reflexão, interpretação ou explicação dos mais diversos “objetos”.
    E o outro fenômeno trata-se do processo dialético entre conservadores e vanguarda, onde esta última busca desconstruir e invalidar o discurso conservador para a troca ou renovação das posições no campo intelectual e a hegemonia do discurso.
    O coronelismo intelectual se dá, em parte, graças ao que Sérgio Buarque de Holanda chamou de bacharelismo criando uma “meritocracia de mandarins” (Peter Drucker) seguindo o modelo do sistema capitalismo (monopólio, acumulação e produção para obsolescência).

  3. Gostei do texto: ao invés de quantidade, qualidade.

    E esta prática de cobrar índices vai na contramão da produção de qualidade, do desenvolvimento da capacidade de pensar, de ter as próprias idéias, de discordar até dos autores mais respeitados (principalmente, destes!), de poder pensar: onde foi que eu errei? De poder dizer: discordo. De ter tempo para refletir a partir de uma leitura: poder fechar um livro depois de algumas páginas e digerir. Isso é aprender, isso é ser sujeito do seu pensamento e das suas ações.

    Não tenho seu talento para escrever. Desta forma, reuno outros textos talentosos, de pessoas que redigem bem sobre um tema que me entristece profundamente: o plágio.

    Coloquei o endereço do blog, então o meu nome nesta postagem serve de ponte para chegar lá e pensar comigo sobre essa cópia que embota todo o processo de aprendizagem e reflexão.

    Vou colocar um link para este texto lá. Obrigada, lavou-me a alma.

  4. Texto que atira a flecha no local correto: A ditadura do pensamento! Só que a maioria não se dá conta disso. Os “Doutores” da razão ditam o que está correto e os outros que concordem ou são excluídos. Não mudou muito, só que antes era mais descarado, hoje enganam melhor, repetindo asneiras como máquinas aos macacos de imitação.

  5. A cultura é uma corrente de elos embricados onde nenhuma ideia prescinde de outra. Nenhum pensamento é autóctone de si mesmo, o que o torna original é sua inserção no contexto atual, sua contemporaneidade e, acima de tudo, a criatividade do autor. Concordo que é realmente humilhante reproduzir ou se fiar pelo pensamento alheio e predecessor, mas, estamos tão mal habituados, pela deformação acadêmica, a engolir e reproduzir o estabelecido que é culto quem recita os clássicos. Assim sendo, seu discurso beira a manifesto, e incita a uma revolução! O que parece mais difícil é angariar corpo de embate. Senão veja, você concorda que os ‘generais’ de uma luta como esta seriam os professores, não? Então, o que sobraria deles se se destituíssem do conteúdo estabelecido. Poucos pensam, foram treinados para reproduzir! Ou a proposta é de uma revolução do pensamento fora da escola, da academia. Uma revolução nas ruas, no indivíduo, mas, como acometer o indivíduo sem inseri-lo num grupo organizado? Você sabe a resposta, pois, é cria daquela academia e revel à mesma. Sei não, paro por aqui, talvez esteja divagando demais. Gosto de ler seus textos, são instigantes. Obrigada!

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