A convivência sob as conexões vigiadas

A convivência sob as conexões vigiadas
Em setembro, convidamos nossos leitores a refletir sobre o que nos conecta (Arte: Cynthia Gyuru/Revista Cult)

 

Lugar de fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de setembro de 2020 é “conexão”.


A palavra conexão é muito utilizada no sentido de interação entre humanos, porém as conexões estão cada vez mais mediadas por relações entre humanos e não humanos e entre os próprios não humanos.

Isto se reflete, por exemplo, quando sobrevalorizamos os Trending Topics das plataformas digitais e só lemos e compartilhamos o que os códigos computacionais consideram relevante para nós.

Hoje, com os sistemas de recomendação, não escolhemos mais o livro que iremos ler, não assistimos mais ao filme que desejamos, nem conversamos mais com os amigos de preferência e estima.

Nosso comportamento se transformou em bancos de dados, onde os cookies são minúsculos acervos dos rastros digitais que vamos deixando na Internet. Eles são os novos depósitos das informações essenciais de nossa vida.

Mergulhados em sistemas de busca monitorada, deixamos de ser cidadãos de ação para nos transformarmos cidadãos de reações, mediados cotidianamente por algoritmo. Este contexto interfere na forma como percebemos o mundo, sentimos e agimos no dia a dia.

A maioria de nós é “seguidora” e passa dias e noites expressando sentimentos como “curti” e “gostei”, por meio de codificações, que criam categorias para rotular nossas emoções. Ser conectado é um estado de convivência em que pensamentos e ações se transformam em códigos computacionais cifrados em uns e zeros.

Estamos sob a convivência da conexão vigiada, gerida por artefatos não humanos, que não precisam mais se parecer com o humano. Fazemos o papel de Walking Deads digitais, em ambientes nos quais grandes conglomerados de mídias sabem o que estamos fazendo, o que pensamos sobre a vida e o que faremos nos próximos momentos.

A manipulação acontece sobre discursos e práticas: somos classificados pelas plataformas digitais e, a partir dessa segmentação, somos imersos em círculos que restringem os modos de viver cotidianos na Internet.

Se nos anos 1990 palavras de ordem como colaboração, conectividade, convergência, participação, comunicação de todos para todos e inteligência coletiva eram significativas para a convivência na Internet, hoje elas precisam ser ressignificadas por ser campos semânticos que precisam ser reapropriados como bens da humanidade, pois cederam lugar a discursos de ódio, a preconceitos e à propagação de mentiras.

Na década de 2020, que se inicia, as palavras de ordem são algoritmos, big data e internet das coisas, que se articulam para dar suporte à cultura da conexão vigiada. Estamos o tempo todo conectados a não humanos e nem percebemos esse estado de interação mediada.

Aquela figura do robô travestido de humano desmoronou, pois os robôs de hoje são códigos de computação sofisticados, que trabalham incessantemente para predizer o que vamos fazer e redirecionar a jornada da humanidade na Internet.

Os novos robôs assumem a ideia de um deus, onipresente, onisciente e onipotente. Muitos de nós nem percebem que eles estão presentes. Muitos nem imaginam como eles nos condicionam e muitos se entregam às forças direcionadoras que esses novos artefatos projetam.

Não à toa, em países como o Brasil, a conexão em meios digitais serviu de suporte para proliferação da cultura do cancelamento, a difusão da desinformação e o aumento do discurso de ódio.

E não podemos mais pensar estas questões como resolvíveis somente no âmbito educacional. Urge um trabalho conjunto na política, na educação, na economia e na cultura, para que aprendamos a lidar com o novo mundo dos humanos e dos não humanos.

Cleonilton Souza, 56, educador, é doutorando em educação na Universidade Federal da Bahia; mora em Salvador e adora caminhar à beira do mar ouvindo música.

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