(Con)fabulações transcestrais e(m) arquivos contra a natureza
As travestis Wanda, Georgia, Guildá, Cassandra e Krystine, em 1969 (foto: Arquivo Nacional/Fundo Correio da Manhã)
“O que o arquivo produz é um dispositivo especular, uma alucinação fundamental e geradora de realidade.” Achille Mbembe, em Necropolítica
O pensamento e a política transfeminista no Brasil permanecerão em estado de graça com a pensadora, atriz e dramaturga Renata Carvalho por haver cunhado e disseminado o termo transcestralidade. A ancestralidade é montagem de socialidade comum a partir do recurso a um passado compartilhado. Mas, como nos ensinam pensadores/as negros/as e indígenas, não há garantias, de antemão, sobre quais vetores incidem na materialização dessa coletividade marcada pelo “ser e fazer herança”, para usar a feliz expressão de “Ser el grito”, música do cantautor transmasculino peruano Eme.
O discurso eurocêntrico construiu sua visão particular do que seria a ancestralidade. E, numa perspectiva universalista de autoridade epistêmica, não a ofereceu como possibilidade entre outras, mas como a verdadeira e última palavra sobre o tema, tornando equivocadas, com sua hegemonia, todas as outras proposições cosmológicas. Nesta heterogênea amálgama que é o Ocidente, a bio-lógica, da qual fala Oyèrónké Oyěwùmí em seu livro A invenção das mulheres, isto é, “a concepção de que a biologia fornece a base lógica para a organização do mundo social”, acaba sobrepondo ancestralidade e sangue.
Não pretendo dissuadir nenhuma leitura da importância do sangue como material compartilhado entre pessoas que, apartadas ou não no tempo histórico, são umbilicalmente conectadas como gerações. Mas, se consi
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