Terra (segue) em transe
Terra em transe (1967), de Glauber Rocha (Reprodução)
Há 50 anos, o Brasil atravessava um dos momentos mais difíceis de sua história: a promulgação do Ato Institucional número 5. O mais duro golpe da ditadura brasileira, que restringiu liberdades e mergulhou o país nos seus anos mais autoritários e violentos.
Para marcar a memória desse evento histórico traumático, o LabJor FAAP, com o apoio da Revista CULT, inaugura nesta terça (13) a série Cinema e ditadura: 50 anos do AI-5. São dez artigos que têm por objeto filmes produzidos sob a influência desses anos de chumbo. A publicação ocorrerá todas as terças e quintas-feiras até o dia 13 de dezembro, data da promulgação do ato, assinado pelo general Costa e Silva.
No dia seguinte, na sexta (14), às 9h30, o LabJor FAAP exibirá o filme Avanti Popolo, (2012), seguido de debate com o diretor e roteirista Michael Wahrmann, e também com Andre Gatti, professor da FAAP, um dos autores na presente série e que interpreta um dos protagonistas do filme de Wahrmann.
Os filmes analisados em “Cinema e Ditadura: 50 Anos do AI-5” são testemunhos de uma situação limite. Vistos sob a lente de 2018, fica claro que estes documentos históricos carregam em si a aporia de nossos tempos; uma mescla de esquecimento, desejo de recordação e resistência. George Orwell dizia: “quem controla o passado, controla o futuro”. O esforço dos autores em rememorar os cinquenta anos do AI-5 através do cinema nacional implica trazer para “claridade devoradora do presente”, segundo Didi-Huberman, a experiência de imagens de resistência; fagulhas necessárias para enfrentamento das contingências do contemporâneo. “Os vaga-lumes desapareceram? Certamente não”, afirmou o historiador.
Voltar-se ao cinema nacional, entre o final da década de 1950 até meados dos anos 1970, é reconhecer uma trajetória de urgência que, inserida na constelação do moderno, delineou um percurso paralelo à experiência das vanguardas europeias e latino-americanas, marcado pelo debate em torno do nacional-popular e pela problemática do realismo crítico. Sobretudo, enquanto balizado pelo conceito de “autor” cinematográfico, o cinema brasileiro moderno deparou-se com a discussão em torno das estratégias estéticas para um cinema político, entre uma linguagem didática e convencional e uma estética de experimentação e estranhamento. Como destacaria Ismail Xavier, “tais debates colocavam em confronto cineastas que acreditavam na potência comunicativa da linguagem clássica e cineastas que inspirados ou não em Brecht, definiam a crítica ao próprio cinema como condição de um cinema crítico voltado para questões sociais”.
Programação
No dia 15/11, Pedro Canin inaugura a série de publicações com seu artigo “Conjuntura das disparidades a partir do cinema: uma breve análise dos anos que precedem o golpe militar pelo olhar de Ruy Guerra”. Neste artigo, o autor propõe uma análise dialética dos aspetos formais do filme Os fuzis (1964) a partir de um mapeamento dos impasses sociopolíticos do Brasil pré-golpe militar.
Em 20/11, Isabella Thebas irá investigar, em “A representação da classe média no cinema brasileiro na primeira fase da ditadura militar”, a figuração da classe média no cinema após entregar aos militares a Presidência da República - o que inicia uma etapa na política nacional marcada pela coexistência de diferentes fases do desenvolvimento no mesmo sistema: de um lado, a integração imperialista internacional; e, de outro, a ideologia da burguesia conservadora centrada no indivíduo, nos valores católicos e na tradição familiar. Os filmes O Desafio (1965), de Paulo Cesar Saraceni, A opinião pública (1967), de Arnaldo Jabor, A falecida (1964), de Leon Hirzman e Procura-se uma rosa (1964), de Jece Valedão, ilustram o percurso da sua análise.
Em 22/11, Diego Migliorini parte deste mesmo universo em “Contexto histórico da ditadura militar”, com o filme São Paulo Sociedade Anônima (1965), de Luis Sérgio Person. Norteado pelo conceito de “Estado burocrático autoritário”, de Guillermo O’Donnel, Migliorini analisa o filme de Person enquanto sua materialização.
Em22/11, encerrando o ciclo que contextualiza a instauração da ditadura militar brasileira, o quarto artigo, “Estratégias do Cinema Novo para despistar a censura”, do dramaturgo Herbert Biancchi, analisa três filmes: O caso dos irmãos Naves (1967), de Luis Sérgio Person, Terra em transe (1967), de Glauber Rocha e As proezas de Satanás na vila do Leva-e-Traz (1967), de Paulo Gil Soares. Em comum, além do ano de lançamento 1967, os filmes já sofrem com a retaliação dos órgãos de censura que passam a supervisionar bem de perto a produção cultural.
Em 29/11 e 4/12, Nicolas Klinke e João Pedro Albuquerque têm como objeto de seus respectivos artigos o cineasta baiano Glauber Rocha. Mas, enquanto Klinke, em “O mar de Glauber Rocha e suas leituras atemporais” irá analisar a alegoria do oceano glauberiano no imaginário cinematográfico nacional, João Pedro Albuquerque, em seu ensaio “Quando há entre a terra do sol e o leopardo de ouro”, investiga uma face pouco debatida do cineasta – o Glauber documentarista, por meio dos filmes, Amazonas Amazonas (1966) e Maranhão 66 (1966).
No dia 06/12, Rafaela Franco Pereira propõe uma reflexão em torno da presença feminina neste cinema revolucionário. O artigo parte de uma investigação em torno da personagem de Sara (Glauce Rocha), em Terra em transe, até desaguar no projeto libertário de Tereza Trautman em Os homens que tive (1973).
Em 11/12, Laura Cogiolla, em “A explosão do terceiro mundo”, toma como objeto de estudo o enfrentamento do grotesco da cultura de massas no projeto Marginal que faz com que a força do choque seja a desconcertante ironia e a boçalidade.
A postura do Cinema Marginal dá andamento – mas em outro estilo, distinto do adotado no Cinema Novo – ao mesmo questionamento proveniente das inquietações tropicalistas. Aqui já não é reivindicado dispor de um mandato popular, não se imagina um compromisso revolucionário do qual o cineasta seria porta-voz. A matéria de expressão é a errância em um espaço onde o caos reina, e não há possibilidade de rompimento, reforçando uma estrutura labiríntica em que antiteleologia toma o próprio estilo de representação.
Em 13/12,para fechar a série, o historiador e crítico André Gatti analisa o legado do projeto moderno de nossa cinematografia, enquanto experiência de imagens de resistência presentes na produção contemporânea, no texto “30 filmes sobre política no Brasil”.
Acender o passado para iluminar o presente
Em Sobrevivência dos vagalumes, o historiador Didi-Huberman revisita o artigo de Pier Paolo Pasolini, “O vazio do poder na Itália”, questionando o tom fatalista que marca sua escrita. Para Didi-Huberman, trata-se de “repensar nosso próprio ‘princípio esperança’ através do modo como o Outrora encontra o Agora para formar um clarão, um brilho, uma constelação onde se libera de alguma forma para nosso próprio Futuro”. O (re)encontro das ações-tempos seria determinante, para que, a partir de “um presente ativo com seu passado reminiscente”, a função política dos agentes memorialísticos se revele em toda sua potência.
A política da sobrevivência, segundo Didi-Huberman, teria na imagem o lampejo capaz de transpor a imobilidade do horizonte, pois, na imagem está contida uma carga histórica indestrutível. Para o autor, em um contexto em que a sobrevivência dos próprios protagonistas históricos esta comprometida, a sobrevivência das imagens faz-se necessária, “mesmo que se encontre reduzida às sobrevivências e às clandestinidades de simples lampejos de noite”.
Imagens-vagalumes que lampejam no horizonte do contemporâneo um resíduo mnemônico que traz à luz do presente o trauma histórico do passado. Nestes termos, há nesses artigos um “esforço” em presentificar a experiência da ditadura militar brasileira através do cinema, buscando romper com o imaginário coletivo que lança este período histórico em um passado distante.
Na esteira desse pensamento, analisar a produção cinematográfica do final da década de 1950 até meados dos anos 1970 é compreender o cinema enquanto instrumento de luta a partir de um esforço em repensar uma conjuntura bastante específica, que tem no emblema de 1968 o marco desta luta. O melhor do cinema brasileiro evidencia a passagem da alegoria revolucionária do pré-64 à “contemplação do inferno”, como escreveu Ismail Xavier, pós-68.
Mariana Lucas Setúbal, 29, mestranda em História Social pela PUC-SP e professora de História do Cinema na FAAP.