Cícero Dias, “Surreal latente, vivo, real”
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Em 28 de agosto de 1931, o escritor Mário de Andrade mandou uma carta a Tarsila do Amaral: “Aqui, grande bulha por causa do Salão em que o Lúcio Costa permitiu a entrada de todos os modernos, e o Cícero Dias apresenta um painel de quarenta e quatro metros de comprimento com uma porção de imoralidades dentro. Os mestres estão furibundos, o escândalo vai grosso, ouvi contar que o edifício da Escola de Belas Artes rachou. O choque foi tanto que vândalos invadiram a mostra e cortaram parte do lado esquerdo da pintura”.
Cícero Dias chocou até os mais radicais entre os modernistas da época com sua obra prima, “Eu vi o mundo… e ele começava no Recife”. A pintura de 15 metros de comprimento apresenta uma Recife surrealista, cujas ruas se enchem de cenas que vão do cotidiano ao erótico. Hoje, em janeiro de 2025, o artista volta a colorir São Paulo com as cores do modernismo pernambucano: o Farol Santander recebe a exposição Cícero Dias – com açúcar, com afeto.
No 22º andar do prédio histórico que marca a paisagem do centro da capital paulista, 42 obras exibem o “pattern ancestral” do pintor que desafiou o modernismo paulista e encantou Pagu, que descreve em crônica de 14 de outubro de 1952: “Uma coloração toda da vida pernambucana, toda a vida em verde e vermelho, em azul e terras, embebida do sangue e do açúcar, da aguardente e da esperança sobre arrecifes de sempre, ao fundo dos quais o mar – velho oceano, na cantata imortal de Lautréamont – bate-se nas pedras e marulhando leva o sonho do menino de engenho transfigurado em exilado de sempre.”
Denise Mattar, curadora da exposição, conta que a paisagem do Engenho Jundiá, em Pernambuco, onde Dias nasceu, foi uma constante em sua obra, mesmo enquanto esteve longe, entre Nova York, Lisboa e Paris. Na capital francesa, onde se fixou definitivamente, fez amizade com Paul Éluard e Pablo Picasso, que lhe escreveu: “Sua presença em Paris é necessária”. Mas foi antes de conhecer a vanguarda parisiense que Dias transformou sua infância em sonho, fundando uma espécie de surrealismo regionalista. Em uma parede da exposição lê-se uma frase do artista, que resume grande parte de sua obra: “A atmosfera do engenho era mágica. Eu não podia fugir ao meu destino. Surreal latente, vivo, real”.
Entre sonhos e recordações de sua terra de origem, é como se o pintor nunca tivesse saído de lá. Por isso, a exposição se constrói como um percurso circular por sua obra: as aquarelas oníricas da década de 1920, as pinturas memorialistas dos anos 1930, o surrealismo de 1940, a abstração da década de 1950, e o retorno à figuração surrealista entre 1960 e 1990. Colocadas lado a lado, pinturas do início e do final da carreira do artista aproximam-se, expressando a tônica de seu trabalho: entre sonho e memória, Dias não perde Pernambuco de vista. Passeando entre os túmulos do cemitério de Montparnasse, em Paris, seu túmulo desponta com a epígrafe “J’ai vu le monde… il commençait à Recife”.
Apesar de nascido em São Paulo, Carlos Trevi, coordenador do Santander Cultural, divide com Cícero Dias a paixão por Recife, onde viveu durante a maior parte de sua vida. Na abertura da exposição, fez questão de servir um tradicional café da manhã pernambucano – cuscuz e pastel de festa, perfumados pelas folhas de canela: “Eu também vi o mundo a partir de Recife”, ele conta.
Sobre receber as imagens do sonho pernambucano de Cícero Dias no centro acinzentado da cidade de São Paulo, Trevi conta que seu desejo é mostrar o valor e a importância do nordeste brasileiro “São Paulo é muito recente para o mundo, em termos de importância econômica – o Brasil começou no nordeste. Cícero Dias é, sem dúvida alguma, um grande protagonista da arte brasileira fora do Brasil. A gente fala muito na Semana de Arte Moderna de 22, em São Paulo, mas Cícero é o maior expoente de toda a geração”, avalia. “Ele foi livre para mostrar o que acreditava ser a pintura e fez um sucesso enorme fora daqui, tanto que foi amigo de Picasso. Seu trabalho tem uma força especial que eu queria mostrar para o paulistano. Nas obras expostas, vejo pinceladas e cores expressivas que só alguém muito avançado para a sua época conseguiria fazer. Só um gênio surrealista criaria isso com tanta naturalidade.”
Cícero Dias – com açúcar, com afeto
Onde: Rua João Brícola, 24 – Centro (estação São Bento – linha 1, azul do metrô)
Funcionamento: terça-feira a domingo, das 09h às 20h
Ingressos: R$ 45,00 (R$ 22,50, meia-entrada)