Cecília Meireles, lendas e fatos

Cecília Meireles, lendas e fatos
A jornalista,, poeta, escritora e professora brasileira Cecília Benevides de Carvalho Meireles (Foto: Reprodução)

 

Antes de se tornar uma das mais potentes vozes da poesia brasileira, Cecília Meireles escrevia seu nome com dois “eles”. Assim mesmo: Cecília Meirelles. Na bem-humorada crônica, “A história de uma letra”, publicada no jornal A Manhã, em 1945, a poeta conta por que aboliu um dos “eles” de seu sobrenome. A causa não foi a mais nova lei ortográfica, bradava ela, mas a superstição ou, melhor, “o valor cabalístico das letras”. A nossa grande poeta acreditava no valor místico do universo. Era supersticiosa, de uma inteligência ímpar e de uma voz poética cristalina. Causava ciúme e admiração por onde passava. Porém, mesmo seus admiradores costumam saber pouco ou quase nada sobre sua vida, principalmente sobre sua infância e juventude.

Por meio de suas crônicas, no entanto, podemos estimar o que seria uma autobiografia assinada por Cecília. Lá ela não escondeu suas mazelas, como o fato de pouco enxergar sem os óculos (“Uns óculos”, A Manhã, 1944) ou, ainda, sua compulsão por guardar papéis, anotações, comprovantes, como admitiu em “Recordações do papel”, publicada em 1945 pelo Correio Paulistano. Em suas crônicas, revelou sua admiração pelo pensador indiano Rabindranath Tagore, bem como por todas as culturas orientais, sobretudo a indiana, pelos poetas brasileiros e latino-americanos, e pela liberdade. Já em 1933, em sua coluna diária sobre educação, chamada “Comentário”, ela ensaiava seu famoso verso do Romanceiro da Inconfidência (1953): “Liberdade – essa palavra que o sonho humano alimenta: que não há ninguém que explique, e ninguém que não entenda!”

Cecília, sem dúvida, passou a maior parte de sua vida diante de uma máquina de escrever. De 1920 a 1964, quando sua última crônica foi publicada na Folha de S.Paulo, a escritora, autora de grandes clássicos da poesia brasileira, escreveu cerca de 2.500 crônicas. O dinamismo intelectual dessa mulher impressiona, tanto quanto sua trágica vida. Aos 18 anos, publicava seu primeiro livro de poemas, Espectros (1919), o qual jamais foi encontrado. Desapareceu. Dele, o que conhecemos são apenas alguns fragmentos. Também pouco se conhece de sua correspondência e de suas anotações pessoais, pois muito do que existe permanece inacessível. Como todos os escritores de sua geração, a poeta foi uma grande missivista. Há notícias de correspondência com Gabriela Mistral, Fernando Pessoa, dentre muitos outros. Mas apenas notícias.

Cecília Meireles nasceu no bairro do Estácio, zona marginal ao Centro do Rio de Janeiro. Segundo os apontamentos do pesquisador Darcy Damasceno, ela nasceu em um sobrado, em cima de um açougue, na rua São Luís, hoje Sampaio Ferraz, e morou até os 34 anos na rua São Cláudio, número 11. Teve sua infância marcada por perdas profundas. Seu pai e sua mãe morreram quando ela ainda era criança. Morte prematura também tiveram seus irmãos Carlos, Vítor e Carmen, que são saudados na crônica “Carta a meus irmãos”. Cecília foi criada por sua avó Maria Jacinta Benevides, açoriana, personagem recorrente em sua obra. A cada perda restava-lha, firme, D. Maria Jacinta.

No início da década de 1920, Cecília casa-se com o ilustrador português Fernando Correia Dias, artista que contribuiu imensamente para o desenvolvimento das artes gráficas no Brasil, autor de caricaturas e desenhos altamente requintados e modernos. Do casamento nasceram as três filhas, três Marias: Maria Elvira, Maria Mathilde e Maria Fernanda. Após a morte de sua avó, em 1933, Cecília e sua família permanecem no mesmo endereço: entre as ruas São Luís e São Cláudio, onde a poeta passou boa parte da vida. Mudou-se temporariamente, depois do casamento, mas logo retornaria à casa da infância e adolescência. Nesse ambiente de recordações afetivas, encontramos a jovem poeta, professora, jornalista e mãe Cecília Meireles, que após a morte de sua avó faz sua primeira viagem a Portugal, em 1934.

A morte de D. Maria Jacinta sinaliza o início de um dos períodos mais trágicos da vida da poeta, que culminaria com o suicídio de seu marido, em 1935. Esse gesto trágico fez com que Cecília rompesse definitivamente com o ambiente de casas e coisas antigas, de quintais e “jardins de cheiros”. Dedica os últimos anos da década de 1930 à dor, à educação e à poesia, renascendo como cronista apenas nos anos 40. Em 1939, na revista portuguesa Ocidente, encontramos seus últimos textos longos em prosa. Trata-se de “Olhinhos de gato”, uma série de artigos sobre sua infância.

A própria Cecília, em entrevista para a revista Manchete, na década de 1960, declarou ser “Olhinhos de gato” seu “pequeno livro de memórias”, em que predomina uma “narrativa sobre a infância”. Em “Olhinhos de gato” ficou cristalizado o universo do bairro do Estácio, onde a gente simples se misturava à pequena burguesia e aos imigrantes portugueses, encarnando a narrativa formadora da alma carioca. Foi no morro de São Carlos, por exemplo, que surgiu a primeira escola de samba. Cecília foi testemunha de toda essa ebulição popular, tanto que entre 1926 e 1934 dedicou-se ao desenho dos gestos e do ritmo da música e da religião afro-brasileiras.

A maior tragédia, no entanto, foi o suicídio de Correia Dias, fato que transformaria a visão de mundo da poeta. Correia Dias suicidou-se em casa, no dia 19 de novembro de 1935, enquanto as filhas se preparavam para os festejos do Dia da Bandeira. “Há muitas mortes por detrás dessa morte. E não foi apenas um suicídio: foi também um assassinato. Posso eu viver muito tempo; pode minha existência tomar os mais inesperados rumos – mas essa noção da inutilidade humana; esta indiferença pela esperança, este desapego da lógica farão de mim cada vez mais uma criatura sem raízes na terra, prescindindo de tudo e à mercê dos casos que a queiram transportar”, escreveu a poeta a Diogo de Macedo, amigo português. (Carta publicada pela revista Terceira Margem, Porto, Portugal, 1998).

 

A biografia de Cecília Meireles
pode ser dividida, assim, em
dois momentos decisivos:
a morte da avó e a de Correia Dias.

 

 

A partir desses eventos cruciais, a poeta refunde sua trajetória e apresenta uma outra Cecília, aquela que conhecemos, dedicada à poesia e à educação. Sua obra reflete as variantes de sua relação com o mundo. A Cecília poeta se impõe apenas em 1937, com a publicação de Viagem. A própria poeta, em sua Obra completa, publicada em 1958 pela Aguillar, elegeu Viagem como livro “inaugural”. Com ele, Cecília ganhou o primeiro grande reconhecimento, o prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras, em 1939.

Nas década de 1920, no entanto, ela já havia publicado seus livros de inspiração simbolista, tais como Nunca mais (1923), Poema dos poemas (1923) e Baladas para El-Rei (1925). Depois de Viagem, seguiram-se as obras Vaga música (1942), Mar absoluto e outros poemas (1945), Retrato natural (1949), Doze noturnos da Holanda (1952), Romanceiro da Inconfidência (1953), Poemas escritos na Índia, (sem data, mas certamente da década de 1950), Metal rosicler (1960), Solombra (1963), dentre outros. Sem dúvida, o Romanceiro da Inconfidência é o seu grande livro, o épico ceciliano.

Quem ficou para trás na nova história de Cecília Meireles não foi apenas a jovem do Estácio, mas também a jornalista engajada que, entre 1930 e 1933, assinou sua página diária sobre educação – na qual chegou a acusar o então ministro de educação, Francisco Campos, de medalhão e o então presidente, Getúlio Vargas, de Sr. Ditador. Foram mais de mil artigos escritos num período turbulento da nossa história política: o início da década de 1930, quando Getúlio assumiu a liderança no país. Nesse período, Cecília lutava contra a inclusão do ensino religioso e defendia as liberdades, como por exemplo a criação de escolas mistas em que ambos os sexos pudessem dividir o mesmo espaço. É bom lembrar que isso ocorreu entre 1930 e 1933, quando a mulher sequer exercia o direito de voto, uma vez que as urnas passaram a contar com o voto feminino apenas em 1934.

A luta de Cecília foi breve. Depois desse período, em carta ao educador Fernando de Azevedo, a poeta desabafou: tinha horror à política, mas num momento em que as forças autoritárias cresciam no mundo era impossível ficar distante. Mas ficou. Atropelada pelas tragédias da vida pessoal, Cecília se afasta da imprensa, dedicando-se à educação. A década de 1930 passou e no início da década de 1940, mais precisamente no ano de 1940, Cecília casa-se com Heitor Grillo.

 

Suas posições diante do
governo Vargas também
mudaram.

 

 

Agora ela é editora da revista Travel in Brazil, publicação do autoritário Estado Novo (1937-1945), isto é, do DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda). A revista, publicada somente em inglês, era chamada por Mário de Andrade, colaborador frequente, de “a Dip-revista”. Durante esse tempo, os dois poetas trocaram uma curta correspondência, publicada no livro Cecília e Mário (1996).

Neste período de farto intercâmbio entre o Brasil e os Estados Unidos, conhecido como a política de boa vizinhança, a poeta faz sua primeira viagem à América. Lá, profere algumas palestras, na Universidade do Texas, sobre o negro no Brasil e escreve uma série de artigos sobre os negros americanos, principalmente sobre sua visita ao Harlem e a um templo evangélico dirigido pelo reverendo Father Divine. Em uma série de três crônicas, todas publicadas em A Manhã, em 1943, Cecília narra suas desventuras pelo bairro nova-iorquino.

A década seguinte é marcada por mais viagens. É quando ela conhece a Índia. Seus passos pelas cidades de Calcutá, Bombaim, entre outras, podem ser seguidos pelas crônicas que publicava no Diário de Notícias. Cecília foi homenageada na Índia e recebeu do povo indiano o reconhecimento por sua divulgação da cultura e da arte daquele país.

Em 1964 a poeta morre, no Rio de Janeiro, de câncer. Durante a década de 1960 dedicou crônicas às curas, à medicina e às enfermeiras, como podemos ler em “Profilaxia” (1962) e “Ai, os hospitais!” (1964). As lendas em torno da imagem de Cecília Meireles jamais deixaram de crescer no meio literário. Há até aqueles que asseguram que, minutos antes de morrer, ela teria recebido a visita de dois religiosos indianos que, como a poeta, nunca mais foram vistos. A sua biografia, como podemos perceber, ainda está para ser escrita. As pistas são muitas, as lendas inúmeras, mas os verdadeiros fatos estão todos impressos em seus livros de poemas, em suas crônicas, em seus artigos acadêmicos – enfim, nas suas palavras.

Valéria Lamego é jornalista, editora da verso Brasil e autora de A farpa na lira: Cecília Meireles na Revolução de 30 (Record)


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(5) Comentários

  1. Gostaria apenas de fazer uma observação. Esse artigo foi escrito em 2001, data do centenário. No mesmo ano, ou no ano seguinte o livro Especros, de 1919, foi encontrado e finalmente publicado.Portanto, ele não é mais uma obra “desaparecida”.

  2. Cecilia foi uma grande mulher sofreu muito na infancia com a morte de seu pai e sua mae mas mesmo assim virou uma das maiores escritoras brasileiras tenho varias poesias dela em casa e eu fiz um trabalho sobre ela e pode saber mas sobre ela

  3. espero que as pessoas continuem gostando dela igual eu gosto eu a adimiro muito pela a força e gara dela espero que seus livros e poesias continuem encantando varias pessoas igual a que me encantou
    BJS esse foi o ultimo
    TCHAU
    Esmeralda Guedes

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