Caminho às avessas
Em A teoria do jardim, Dora Ribeiro faz da poesia o reforço de sua identidade
Ivan Marques
Nascida em Campo Grande, no interior do Brasil, em 1960, Dora Ribeiro viveu mais de 20 anos em Portugal. Recentemente, mudou-se para a China, numa aparente radicalização de seu temperamento errante e da condição de estrangeira. Avançando por mares nunca dantes navegados, a poeta, que no passado se autodenominou bicho do mato (título do volume publicado em 2000, com a reunião de seus cinco primeiros livros), poderia dar a impressão de ter voltado definitivamente as costas para o Brasil. Não é isso, entretanto, o que verificamos ao ler os versos de seu novo livro, A teoria do jardim.
Se a coletânea de nove anos atrás afirmava o caráter meio arisco de uma poeta que tecia sua obra às escuras, clandestinamente – mas que, ao publicá-la, procurava justamente sair da concha –, a expressão bicho do mato (de Mato Grosso?) também aludia com clareza às raízes terrestres, ainda que abstratas, mas seguramente não marítimas, daquele notável conjunto de poemas ditos portugueses. Raízes orgânicas, estruturais, que ora se clarificam na retomada do velho topos do jardim.
No começo de sua carreira, como observou Flora Süssekind, o lirismo de Dora Ribeiro, construindo-se em torno da autoexpressividade, trazia as marcas da “poesia-diário”, bastante praticada pela geração marginal dos anos 1970. Os poemas do livro de estreia, Ladrilho de palavras (1984), revelavam um sujeito andarilho, recoberto pela poeira do cotidiano, em íntimo contato com o mundo exterior. Ao chegar a Lisboa, destituída de chão e de referências, a poeta viu-se obrigada a reaprender o próprio idioma. Sua produção dessa época caracteriza-se pelo convívio de duas formas da mesma língua. São poemas em que, no dizer de Luiz Costa Lima, ocorre uma rarefação contínua dos dados da memória e da subjetividade – caminho que conduziu a autora a uma espécie irônica de “sensualismo abstrato”.
Entre o mar e o interior
Sobre as diferenças que existem entre as letras do Brasil e as de Portugal – duas literaturas de uma só língua, tão estrangeiras uma em relação à outra –, muita tinta já correu desde o período romântico, e sobretudo na fase modernista, quando a produção literária brasileira firmou de vez sua autonomia. Para além do descompasso linguístico, algo que chamou a atenção da crítica foi um interessante contraste temático: enquanto os portugueses, desde Camões, têm se preocupado obsessivamente com o mar, os escritores brasileiros direcionam seu interesse e suas indagações para o interior. Navegar, como exprime Fernando Pessoa no Cancioneiro, é “ser outro constantemente”, embriagar-se na diversidade. Já os brasileiros, recusando o mar, preferem empreender uma interminável viagem para dentro de si mesmos, um renitente caminho às avessas.
“Existimos ora secos ora regressados”, afirmou Dora Ribeiro na conclusão de um belo poema de 1990 sobre a “teoria dos mares”. Resumia aí as duas faces de sua própria experiência, que correspondem às distintas visões de mundo encontradas em cada uma das margens do Atlântico. Ambas estão representadas em sua obra poética. De um lado, a “estrada precária” da viajante, cujas abstrações parecem espelhar a vida sonhada e a alma oceânica de Portugal. De outro, a substituição do vaivém das águas por um ideal de “terrestridade” e a busca obstinada de palavras temporais (título do terceiro livro), isto é, palavras “maduras de tempo e história”. No primeiro polo, a convicção de que “o poema não tem raiz / nasce na superfície do inexplicável”. No outro, declarações enfáticas como a que aparece nas páginas iniciais do novo livro – “o sertão sou eu” –, aproximando-a de escritores brasileiros filiados ao regionalismo, já evocados em antigos poemas: “casualmente o Rosa me diz / tudo é caminho de volta / e eu me comovo até a raiz”.
As teorias, sempre irônicas, se alternam. Sucedendo ao arrazoado sobre os mares (que já punha o regresso antes da viagem), destaca-se agora outro ensaio de construção racional. A teoria do jardim é o livro de uma poeta regressada, sequiosa de seu próprio quintal. Depois de procurar o “lado invisível” da terra, Dora Ribeiro agora se dispõe ao cultivo amoroso de sua “infância de árvores” e dos frutos de seu pomar. O livro está cheio de plantas, bichos, cheiros, sabores, “coisas vivas”, memórias sertanejas, luminosos retratos. Não se trata mais de uma sensualidade abstrata, e sim da “matéria estreita da vida”, algo vermelho e palpável como “a tua forma de romã”. Associada desde tempos antigos à terra, à fecundidade e ao amor – e tendo florescido tão bem em território brasileiro –, a romã é o símbolo perfeito dessa nova fase da poeta.
Poética fiel à incerteza
Quanto ao título da coletânea, é preciso lembrar que a teoria aqui enunciada não se relaciona com a ideia tradicional do jardim como miniatura do cosmo e representação da razão e da ordem (em oposição à espontaneidade e ao caos). Ao engenho, Dora prefere a ingenuidade. Sua poética flertou desde o princípio com o acaso e se mantém fiel à incerteza: “O traçado do teu jardim / ignora parágrafos / para avançar nas / delicadezas do imprevisto / e da inexatidão”.
Mistura, imprevisibilidade, inversão das expectativas, resistência à ordem, recusa das classificações, tudo isso que define o humor – mais acentuado agora do que nos livros anteriores – não nos coloca próximos também da sempre lembrada “alegria” nacional? Note-se, entretanto, que os cromos de Dora Ribeiro combinam o riso e a leveza de um poema “pau-brasil” com a munição pesada dos recortes drummondianos, como se nota nesta visão melancólica e trágica de uma “paisagem brasileira”:
a mulher tem o tamanho da casa
e o seu filho mal passa
pela porta
o morro da paisagem desce
e não sobe mais
A despeito do reconhecimento das agruras, persiste, pela via da memória, o encanto com o “terreno primordial” e seus frutos. Em inúmeras páginas, revela-se o contentamento de um eu lírico que anteriormente, entregue ao movimento incessante das águas, “não acreditava que existisse / o lugar de mim de meu / de eu só”.
A teoria do jardim
Dora Ribeiro
Companhia das Letras
96 págs.
R$ 32,50