Cadáveres

Cadáveres
(Maksym Kaharlytskyi/Unsplash)

 

Lugar de fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de agosto de 2020 é “solidão”.


Há sempre sopro de vida na morte.

Soninha sorveu o último gole de seu gim embriagando-se junto às lágrimas depressivas, cachoeira de seus olhos-rímel-conspurcados. “Homem amarrado nu em poste”, dizia o jornal jogado embaixo da porta. A imagem-rosto do homem sorrindo sem suas vestes com as partes expostas entre cordas, desvelaram seus demônios emudecidos pelos placebo-diagnosticados transtornos psiquiátricos. Aquele homem-epifania despertara-lhe permanências, máculas-fantasmas, que corroíam e comandavam dia a dia seu corpo adcito.

***

Na madrugada anterior, poesia em terça pandêmica, sob infinito céu piscante, com seus pés descalços, roupa do domingo de missa e asas invisíveis, saiu o homem acompanhado de sua Ausência, primeiro nome dado à Saudade. Foi buscar a sua avó.

Pulou o muro do cemitério, emprestou furtivo a pá do coveiro e cavou a terra ainda fofa do enterro recente. Certo apenas de sono dorminhoco da avó na viagem de volta, mesmo no vagão escuro-madeira apertado em que a viu pela última vez, cavava. Cavava o sono perdido por entre os cabelos e unhas pintadas daquela que ainda o punha para dormir aos 32; cavava a luta da velha braba saindo às turras com os moleques que zombavam da fala deficiente e do rosto deforme de “seu menino”; cavava o abraço transmutado música, depois dança, depois riso, entre as louças sujas na pia; cavava a mão orgulhosa em seus ombros curvos e o cafuné em sua barriga cheia da canjica quente de julho; cavava o amor temporariamente roubado de sua alma reclamante dolorosa-sozinha-insone-desesperada.

Mas, naquela madrugada, poria fim à viagem longa do seu amor que sempre tardara nas faxinas em casa de família, mas era pontual em adormecer a noite com suas canções.  Ele teria tudinho de volta, acreditava. Como vovó viajou com o Pai que nunca conhecera, por causa dos seus órgãos doentes morrerem, pensou ingênuo ceder-lhe metade dos seus, para que continuassem a vida juntos, sem tanta demora até sua volta.

Na tentativa de doar suas entranhas e reavivar as vísceras da mulher que lhe deu a trivialidade do amor cego de suas deficiências; abriu o caixão, tomou seu corpo roxo-franzino nos braços, beijou a Saudade, pediu pra ela ir embora, oferecendo-se para dividir sua sobra-vida, pois o tempo repartido era amor multiplicado. Assim ele fez.  Com corpo teso, nas noites de estrelas caindo só para os dois, o homem ria, gargalhava, valseava junto ao corpo, ao som das modas de tempo perdido cantadas pela velhinha enquanto lavava louça na bacia de alumínio. Ela enfim volta. Vivia! Reinava! Anjos e deuses batiam palmas e a senhora, antes, inerte, sentiu o calor-impulso da vida, o sabor do amor dedicado.  Vovó não chore, ele dizia. Ela, aos seus olhos, renascia em seu coração e se fazia novamente única companhia.

Os moradores nos arredores das cruzes, lápides, epitáfios, assustados com tamanha cantoria, só viram o corpo pendente-idoso e a sanidade jazida. Prenderam o homem insano no poste, retiraram suas roupas, chamaram a polícia. Vilipêndio, disseram. O homem amarrado não compreendia, letras, lei ou números, tampouco a diferença de morte-vida.  Só sabia amar a vida morta, dançando, pondo fim àquela agonia. Dias depois, seus corpos estavam juntos novamente. Vovó buscou seu anjinho na prisão.

Nas covas, novo ponto turístico da cidade, duas rosas e um bilhete: “obrigada pela dança”. Ninguém entendeu. Acharam ser escárnio de moleques ou fuga de “doido” letrado atraído pela música silenciosa Os mais crentes, diziam ser escrita do neto saudoso que aprendera no céu as letras.

***

Dois meses depois de ver o retrato do homem alado, Soninha era mulher soerguida.

O homem que, pela última vez, negou a ausência do amor lhe atribuído, tornou derradeira a vez que de si a mulher se escondia.

Reconheceu-se dançando há tempos com seus cadáveres de mágoas e ausência. Ao contrário do homem que, flertando com a dor encontrou recidiva-vida, percebeu a morte amalgamada em suas gavetas, quadros, maçanetas e pias.

Carregava, corcunda, seus muitos cadáveres, sem nunca chamá-los para uma última dança, sem nunca querer protagonizar, ao menos dividir, com eles as mazelas da sua própria vida. Mantinha-os culpados, enclausurados, prontos para serem desculpas. Bebia. Filhos, amigos, amantes, tentavam em vão ser dois junto dela, porém Soninha nunca soube ser sozinha. Era quatro, vinte, cinquenta. Um mar de defuntos, orgia de mortos-vivos em sua cama.  Ela também… morta.

Pensou: de quantas cartas, livros, dedicatórias, esperanças de tudo volta as pessoas se fazem? De quantos violões esquecidos de amores se faz a canção onírica e enganosa de história de amor renascida? Quantas fotografias de afetos perdido-passados estão calcadas nas mentiras de pena de seu desfazimento, quando o que se guarda é a ilusão incauta de passado ressuscitado?

Na dança do “louco” e nas cinzas-fogueira daquelas memórias, Soninha, encontrou realinho.

Refez a cama, despojou-se de todos que com ela dormiam, deixando apenas o netinho, companhia das noites vazio-inebriadas. Beijou-o, fez-lhe o sinal da cruz, vestiu-se da luz sol.

Foi a primeira vez sozinha nos anos, entre túmulos, acompanhada somente do bilhete, das flores e imensamente agradecida.

Há chama de vida na morte.

Audalice Chaves Hildebrando, 33, é advogada e apaixonada por histórias e literatura . Às vezes, escreve sobre o que vê e sente.

 

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