Como falar com os outros? Política, religião e escuta
Nitiren Daishonin
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“O problema da esquerda hoje é que ela não sabe se comunicar, ela precisa aprender a falar com a quebrada, com a periferia.” “O problema que enfrentamos hoje é que precisamos aprender a conversar com os evangélicos, com os religiosos.” A despeito de eu concordar com o fato de que existem questões de linguagem e de comunicação a serem resolvidas, isso não tem nada a ver com essa forma extremamente estigmatizante de afirmação. Em primeiro lugar, porque faz parecer que guardamos grandes conhecimentos e luzes que precisam apenas ser traduzidas para uma linguagem acessível, que, em geral, parece indicar recursos que vão da infantilização à tutela. Em segundo, porque participa na construção de um sujeito “distante”, uma espécie de caricatura do morador de periferia, do evangélico, da jovem menina negra. Ainda com relação ao diálogo com os evangélicos, seus sentidos parecem sempre incluir uma certa “cura do fanatismo”. Como se, de partida, fossem todos fundamentalistas e fanáticos. Adicionalmente chamo a atenção para os sentidos que serpenteiam sob esse diagnóstico, segundo o qual o problema da esquerda é como falar; não como ouvir, construir relações ou se modificar a partir de encontros. É como falar. Ou seja, o tesão da voz unidirecional parece ainda existir ali. O tesão nas próprias teorias.
Como é o tom dessa crítica? Levemente comovido, certo como quem diz algo abarrotado de verdade. Como se nos revelasse uma nova questão, exclusiva da esquerda e de nosso tempo. Uma grande sacada comunicacional! Aplausos comovidos. Às vezes ela é feita ainda por aqueles que querem apenas criticar pautas feministas e LGBTs com um banho de cinismo e dizer que evangélicos e pessoas da quebrada jamais as entenderiam. Nesse caso, trata-se apenas de um espantalho. Um fantasma que se mistura aos clichês sobre linguagem que permeiam nosso cotidiano.
Qual a maneira correta de conversar com as pessoas?
Há algum tempo, li uma escritura do Budismo Nitiren, de 1262 no Japão. Chamava-se “O ensinamento, a capacidade, o tempo e o país”. O texto falava sobre as formas de propagação dos ensinamentos do Buda (são milhares de sutras e ensinamentos compilados) e discorria sobre as orientações deixadas mil anos antes por Sidarta Gautama Sakyamuni. Um dos trechos que muito me chamou a atenção nessa escritura, e que justifica sua menção neste texto, está presente na Coletânea dos Escritos de Nitiren Daishonin, Vol 1, onde se lê: “Quem pretende propagar os ensinamentos do budismo deve conhecer a capacidade e a natureza básica das pessoas para as quais se dirige. O venerável Shariputra tentou instruir um ferreiro ensinando-o a meditar sobre as impurezas do corpo e a um lavadeiro explicando-lhe a meditação com base na contagem da respiração. Embora esses discípulos tivessem passado mais de 90 dias nas respectivas meditações, eles não obtiveram nenhuma compreensão dos ensinamentos do Buda. Ao contrário conceberam visões errôneas e terminaram por se tornar icchantika [descrentes incorrigíveis]. O Buda, por outro lado, instruiu o ferreiro com base na contagem da respiração e o lavadeiro na meditação sobre as impurezas do corpo. Como resultado ambos compreenderam prontamente”.
A questão apresentada é justamente sobre a relação entre a linguagem utilizada na transmissão de um ensinamento e a capacidade de absorção daqueles que escutam. O erro de Shariputra esteve em desconsiderar os ofícios daqueles a quem ensinou. Quando aquilo de que falamos dialoga com a vida cotidiana das pessoas, os seus sentidos ganham as cores da vida dessa pessoa. A relação entre a prática laboral diária e a prática meditativa era simbólica, a que Buda chamou de “capacidade”. Contudo, a questão por trás disso é: como falar e ser ouvido? E a resposta é que antes é necessário ouvir. Silenciar toda essa nossa esperteza, sabedoria e conhecimento. Ficar quieto e ouvir o que a vida e as pessoas com as quais queremos dialogar dizem e querem. Encontrar a linguagem correta para conversar com as mais diversas pessoas não é uma questão de esmero em habilidades de fala, mas de escuta.
No decorrer do texto, Nitiren afirma ainda que é preciso também conhecer o tempo e dizer quando é chegado o momento de dizer. Essas são questões também de pertinência. Como podemos conhecer o tempo se estivermos preocupados em fazer com que tudo caiba em nossas falidas análises de conjuntura? “Como falar?” é um problema que nada tem de novo. Considerando os sutras do texto de Daishonin, dos ensinos de Sakyamuni, esta é uma questão de, no mínimo, 2500 anos! O problema não é não saber falar: é não ouvir, não ver, não sentir e ter respostas demais. Uma verdadeira overdose de respostas. Estamos afogados em respostas, certezas, julgamentos e pareceres. E morremos.
Helena Vieira é escritora e transfeminista.