Breve conto da solidão

Breve conto da solidão
Foto: Jason Briscoe/Unsplash

 

Lugar de fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de agosto de 2020 é “solidão”.


A sala é ampla, bem arejada. Há uma janela de cada lado e o ar circula deliciosamente, calado. Gosto de sentar-me no sofá com uma caneca de café na mão e sentir a aragem a fazer meus cabelos, livres, flutuantes, dançarem. Livros, em uma grande estante – tenho tido tempo para ler. Na parede que dá de frente para ela, quadros que bons amigos em outros tempos me deram.

Tempos distantes.

Termino meu café e vou até a cozinha deixar a caneca. É decorada com azulejos não muito azuis, mas quase – eu chamava essa cor de verde-tinta na infância, mas é quase um azul. Só eu a chamava assim, e ainda chamo, porque não conheço outro nome melhor. Há algumas plantas penduradas no teto. Acho que combinam com os azulejos – em contraste, deixam-nos mais azuis, quase celestes.

Caixilho aberto.

Caminho até o banheiro. É branco e preto, lugar-comum. Olho meu reflexo e não preciso dizer que me vejo só. Examino-me: testa, pálpebras, nariz, bochechas, boca, queixo. Tudo o que todos têm. É verdade, ainda estou aqui. Abro a torneira e lavo-me a face por inteiro. Fecho o registro e esfrego a pele uma última vez. Não, não é uma ilusão. Continuo aqui, sou superfície. E além.

Existo, e não.

Mal noto meus passos. Levaram-me, e estou em meu quarto. Lanço-me na cama de molas, demasiado enorme, finos lençóis aveludados. Fecho os olhos e imagino-me em um lugar onde há poucos meses encontrava-me. O mundo era outro, meu eu era outro, dá-me um nó. Respiro um ar que não está mais ali. Energizo-me da energia leve de uma sociedade que não está mais aqui. Quem eu sou, eu não sei mais.

Sei que estou só.

O aroma é de flores, talvez manacá-de-jardim, prontas para dar seu néctar. De súbito, segue-se o vapor quente de uma comida boa, feita em panela de barro, ainda ardente no fogo. Inalo tudo o que posso desse sabor e perpassa-me então uma brisa à guisa de dança celebrada por pessoas felizes em harmonia a sorrir. Quase posso sentir o farfalhar dos pés ligeiros no espaço que me cerca.

Não estão mais ali.

Nada mais daquilo está… Algo os tomou de mim, e cerca-me em seu lugar alguma coisa oposta e invisível que anuviou os afetos. Não me encorajo a abrir os olhos. Não quero encarar isso que flutua no vento. Nem sequer precisa ventar, basta estar. Já não sinto os perfumes, os calores, a bem-aventurança. São parte de uma completude que não há.

Não me alcança.

Cerro-me em mim, em um mundo próprio de que não tenho a exata pretensão de sair – medo do que há por vir, medo do que não enxergo lá. Não estou ali. Não sei se estou, não sei se sou. Não, eu sou. Alguma coisa sou. Sou um pouco de pavor e um pouco de resfôlego, um pouco de engasgo e um pouco de ar, um pouco de gelo do mar e um pouco de caldeira em ardor. Sou um caldeirão confuso que não reconhece mais o fogo.

Um pouco de dor.

Há alguém aí? Não há. Meus pensamentos são ecos que reverberam em si mesmos, batendo-se e debatendo-se no oco da minha cabeça cheia de razão. O mundo embaralhou-se e as bússolas perderam-se em desarranjo e não entendo onde mais está meu lar. Não vislumbro as luzes do porvir. Se vêm ou se vão, sei que nada serão. Viajo num vento interno de um inverno rudimentar. Sou sobrenadante que na espuma dos oceanos – é nada.

Não sei flutuar.

Bato-me e debato-me, qual pensamentos, e ganho peso, e mais peso, e mais. Afundo como âncora em uma trajetória solitária. Não viajo reto – espiralo. Não sei bem aonde vou, não sei em que águas estou. Já não sinto nem apatia nem vigor, nem medo nem arrojo, nem frio nem calor. Uma coisa apenas sei muito, bastante bem, uma verdade elementar – só estou. Numa concha.

Pérola no mar.

Ricardo do Nascimento Fernandes, 30, mora em Kleve, na Alemanha. Trabalha como médico veterinário e administrador, além de ser mestrando em Gestão do Desenvolvimento Sustentável.

Deixe o seu comentário

TV Cult