Brasil para todos, Exu no través de tudo

Brasil para todos, Exu no través de tudo
(Foto: Bob Sousa)

 

Fotos de Bob Sousa

Fausto é o espetáculo dirigido por José Celso Martinez Corrêa em cartaz no Teatro Paulo Autran, do Sesc Pinheiros, até o próximo dia 11 de setembro. A recriação do material dramatúrgico original, a peça A trágica história do Doutor Fausto, de Christopher Marlowe, a cargo de Fernando de Carvalho em parceria com Zé Celso (ambos também tradutores do texto, Fernando, ainda, codiretor do espetáculo) é assim apresentada no programa: “Fausto revira na encruzilhada do Brasil aqui agora: uma re-vista de 2022 no universo hoje ameaçado pela tirania e o fim do mundo”. Vale a pena conferir o que esse clássico virado do avesso tem a (nos) dizer.

O Fausto de Marlowe trata dos novos modos de subjetivação advindos da Renascença, colocando em cena um personagem cindido entre duas visões de mundo: as crenças e os saberes da Idade Média que ainda persistiam na virada do século 16 para o século 17 e o conhecimento racional, de base cientifica, que começava a ganhar corpo a partir da retomada dos velhos valores iluministas greco-latinos. A peça discute o advento da individualidade sob a ótica das forças que consomem os indivíduos, seja no plano religioso, seja na esfera ética, porque a vontade soberana do ser humano corre o risco de se converter em tirania quando não se pesam as consequências das escolhas. O protagonista vende a alma ao diabo em troca de conhecimento e poder. Falar do demônio, hoje, no Brasil, em meio ao fundamentalismo evangélico que escapa furioso das igrejas e ameaça se instalar como mentalidade dominante na vida social mais ampla é uma necessidade política, mais do que religiosa. Falar de quem vende a alma em troca de poder, frente à imoralidade geral e à volatilidade das consciências, é uma necessidade ética, mais do que mítica.

(Foto: Bob Sousa)

Uma das grandes qualidades da encenação é a sua estrutura aberta, em íntima conexão com a dramaturgia elisabetana que viu surgirem os nomes de Ben Johnson, Thomas Kyd, John Lily e do próprio Marlowe, anteriormente à aparição de William Shakespeare. Em processo de evolução ininterrupta da Idade Média à Renascença, o teatro inglês do reinado de Elizabeth I é uma das últimas manifestações artísticas (ao lado da dramaturgia espanhola do Século de Ouro) de natureza essencialmente popular, estabelecendo uma franca interlocução com as diversas camadas sociais de seu tempo. Trata-se de uma dramaturgia a céu aberto, com palco vazio de cenário, vazada em versos com grande poder de encantamento e apoiada no estímulo à imaginação da plateia. Depois disso, viria o advento do teatro burguês. Pelas mãos de Zé Celso, Fausto vira um misto de moralidade, auto, mistério, circo, revista, musical, chanchada e palhaçaria, deglutidos com a gula tragikomediorgiástica de sempre do Oficina. Incorporando diversos efeitos tecnológicos, visuais e musicais, o Fausto de hoje é um espetáculo também francamente concebido para o maravilhamento corporal-sinestésico do público. Nada mais diabólico.

As vinte e quatro vezes em que o Fausto de Marlowe foi encenado em sua primeira temporada (segundo Bárbara Heliodora) em fins do século 16 não deixava dúvida quanto à novidade temática: a peça tratava dos emaranhados da consciência e do desejo e suas implicações sociais em uma época em que à noção de indivíduo aderiam os conceitos de autonomia e protagonismo, a partir de uma perspectiva até então inédita. A segunda parte da peça mostra, por exemplo, como Fausto goza dos privilégios que lhe foram oferecidos. Já o Fausto de José Celso Martinez Corrêa e Fernando de Carvalho é um retrato do Brasil da violência perpetrada por canalhas que libidinizam o poder e por devassos que empoderam a libido, segundo a aguda interpretação de Christian Dunker. Contra a obstinação sagrada da salvação cristã – “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos” –, o Fausto de Zé Celso proclama o direito ao avesso consagrado pelas religiões de matriz africana: Brasil para todos, Exu no través de tudo.

(Foto: Bob Sousa)

Em Uma história do diabo: séculos 1220, o historiador francês Robert Muchembled identifica duas apropriações culturais diferentes da figura do maligno: de um lado, uma grande corrente, “vigente principalmente nos Estados Unidos e na Europa setentrional, que cultiva o temor aos perigos e malefícios advindos da Besta Fera que ronda ou habita cada um de nós, com o que se conserva a ideia da necessidade de controle e expurgo. E, de outro, é caracterizada a corrente representada pela França e, de maneira diversa, pela Bélgica, que instaura um processo de transubstanciação da figura do diabo, permitindo a sua inserção na órbita do humor e na lógica do hedonismo”. O Lúcifer de Zé Celso é apresentado em cena pela ótica da carnavalização – evidenciada pelo figurino à la Clóvis Bornay usado por Marcelo Drummond. A velha luta do bem contra o mal, apropriada hoje em chave de farsa grotesca, é reproposta a partir de uma perspectiva pagã, humanista, libertadora.

Em 1646, na Inglaterra, um escritor notava com ousada perspicácia não doutrinária que, se não acreditarmos no Diabo, rapidamente podemos acreditar também que não haja um Deus – o que levou o historiador Keith Thomas a afirmar que “o diabo imanente era o complemento essencial da ideia de um Deus imanente”. O Fausto de Zé Celso investe na associação cosmogônica Deus-Diabo, presente em diversas mitologias de culturas tradicionais, asiáticas e primitivas, estudadas pelo cientista das religiões romeno Mircea Eliade. Muitas delas, afirma o estudioso, referem-se à consanguinidade de Deus e de Satã, que extrapola o dualismo típico entre o bem e o mal para postular um princípio único de explicação do mundo. O problema do bem e do mal, esquecem os fundamentalistas de todos os tempos, está no olhar que o homem lança ao mundo e não no mundo em si.

(Foto: Bob Sousa)

Um dos efeitos cênicos mais impactantes propostos por Zé Celso é o da ampulheta que faz escorrer, acintosa e tragicamente, a areia do tempo diante dos olhos de todos os espectadores. Presa da encruzilhada dos tempos, Fausto não é capaz de pensar nas consequências que suas ações no aqui-agora terão sobre o futuro, porque, como todos nós, ele usufrui única e exclusivamente de um presente avassalador para o qual o futuro representa somente risco e ameaça. O futuro em Fausto é um Outro. Como Mefistófeles, que não é bem uma entidade maligna, é somente um outro sujeito diante de Fausto. O demônio que assombra verdadeiramente o protagonista é a sua própria consciência. Segundo John Gassner, a peça, assim, “derrama o novo vinho da Renascença em uma velha garrafa”. Muito antes de Jean-Paul Sartre, Marlowe já advertia que o verdadeiro inferno é a consciência cindida entre o si mesmo e os outros, que só entram na esfera da pessoa para serem combatidos, aniquilados ou usufruídos hedonisticamente. “O inferno não tem limites, e nem está circunscrito/ A um único lugar, pois onde estamos é o inferno,/ E onde é o inferno lá devemos estar”, afirma Mefistófeles. Marlowe traz à cena o individualismo romântico e a vontade feroz. Zé Celso amplia a discussão, convertendo o palco na tragédia de nossa ferocidade ególatra. Ou idólatra. Tanto faz.

(Foto: Bob Sousa)

Em Fausto, Zé Celso mostra que encenar é um processo químico. O encenador deve ser um alquimista, que leva o teatro a explodir, efêmero que é, em pleno ar. Ao misturarem Marlowe com Guimarães Rosa, Zé Celso e Fernando de Carvalho não estão lançando mão de nenhum tipo de sincretismo literário. Não se trata absolutamente aqui de assimilar elementos diversos tomados de diferentes tradições letradas. Trata-se de afirmar, como Francis Utéza em Metafísica do Grande Sertão, que, embora seja múltipla e plural, a arte também trabalha com o conhecimento do Uno. As epifanias, a sabedoria, os mistérios consagrados em cena são o fruto de um processo alquímico que concilia os contrários e livra artistas e público do “mal”. Para pactuar, Fausto necessitou do sangue de suas veias. A alquimia do encenar, mostra Zé Celso, conciliando o sertão rosiano com a Inglaterra renascentista, precisa do sangue do coração. Depois de contrariar o divino, travessamente escondido no par de clowns God-Godot, Zé Celso contraria o demoníaco nesse Fausto que “revira na encruzilhada do Brasil”, acreditando ainda ser possível atravessar, com toda a liberdade, a terra do sol.

FAUSTO
Teatro Paulo Autran (1010 lugares) – Sesc Pinheiros
Rua Paes Leme, 195 – Pinheiros – São Paulo
Sextas e sábados, às 20hdomingos, às 18h
Ingressos: R$ 40, R$ 20 e R$ 12
Duração: 150 minutos
Classificação: 16 anos
Até 11 de setembro

(Foto: Bob Sousa)

Welington Andrade é bacharel em Artes Cênicas pela Uni-Rio e em Letras pela Universidade de São Paulo, onde também desenvolveu suas pesquisas de mestrado e de doutorado. É professor do curso de jornalismo da Faculdade Cásper Líbero desde 1997, onde atualmente é diretor.


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