A cavalaria bolsonarista, a questão indígena e o meio-ambiente
Aldeia Ipatse, no Parque Indígena do Xingu (Foto: Pedro Biondi/Agência Brasil)
Por André Carreira
Brasília, abril de 1998, Câmara de Deputados:
“A cavalaria brasileira foi muito incompetente. Competente foi a cavalaria norte-americana, que dizimou seus índios no passado e hoje em dia não tem esse problema em seu país.”
A pauta era demarcação de terras indígenas. No microfone, proferindo as palavras acima, um obscuro deputado federal do baixo clero.
O então deputado saiu das sombras, embora as ideias que defende permaneçam por lá. Em duas décadas, o parlamentar virou presidenciável e o presidenciável virou presidente.
Durante a campanha eleitoral de 2018, defendeu abertamente que, caso eleito, não “teria um centímetro sequer de terra demarcada para indígena ou quilombola”. Eleito, voltou a afirmar que “enquanto for presidente, não vai ter demarcação de terras indígenas”. Às declarações, somam-se os projetos de regulamentação e legalização do garimpo em terras indígenas e de exploração econômica de regiões demarcadas.
O presidenciável que dizia que as “minorias devem se curvar às maiorias” chegou ao poder. Nada surpreendente, portanto, o atual discurso – acompanhado de ações – de “assimilação” da população indígena e de exploração econômica das riquezas de suas terras.
Recentemente, a ONU publicou o alarmante relatório Avaliação Global sobre Biodiversidade e Ecossistemas,organizado pela Plataforma Intergovernamental Sobre a Biodiversidade e os Serviços Ecossistêmicos. Produzido durante três anos, o estudo foi elaborado por 145 especialistas de 50 países e ainda contou com a colaboração de outros 310 cientistas espalhados pelo mundo. O texto afirma, entre outras coisas, que “um milhão dos oito milhões de espécies animais e vegetais existentes na Terra estão ameaçadas de extinção e poderiam desaparecer em questão de décadas se medidas efetivas, urgentes e decisivas não forem tomadas”. Entre os cinco fatores apontados pelo relatório para as aceleradas – e catastróficas – transformações na natureza, o primeiro reside na mudança significativa ocorrida nos últimos cinqüenta anos no uso da terra e do mar. A ação humana, exemplificada aqui pela utilização econômica de recursos terrestres e marítimos, é diretamente responsável por alterações climáticas e pela redução da biodiversidade.
O relatório, entretanto, indica um contraponto a esse trágico quadro.
Entre as conclusões apresentadas, o estudo demonstra que a destruição da natureza é mais lenta nas terras onde vivem povos indígenas do que no resto do planeta. Em entrevista ao jornal El País, a cientista Nurit Bensusan detalha essa constatação: “Por um lado, os indígenas conservam a integridade das terras em que vivem e tentam, apesar das constantes ameaças, evitar que madeireiros, garimpeiros e grileiros utilizem as terras de forma predatória.”
Os números referentes a desmatamento, inferiores em áreas indígenas demarcadas segundo dados do INPE, confirmam essa tendência.
Aquilo que é tratado pela administração Bolsonaro como problema, para a ONU e a comunidade científica internacional é visto como solução.
Na Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas de 1993, com o Brasil como um de seus signatários, ressalta-se a “urgente necessidade de promover e respeitar os direitos e características dos povos indígenas, que se originam em sua história, filosofia, culturas, tradições espirituais e outras, assim como em suas estruturas políticas, econômicas e sociais, especialmente seus direitos a terras, territórios e recursos.”
Os povos indígenas têm um capítulo próprio na Constituição de 1988, que reconhece seu direito sobre as terras que habitam. Os indígenas brasileiros são cerca de 800.000 (0,6% da população), estão divididos em 225 grupos e vivem em 14% do território.
Com os direitos dos povos indígenas em chamas como parte significativa da Amazônia, é imprescindível a luta da sociedade brasileira frente aos retrocessos recentes.
Bolsonaro, em palavras e ações, deixa claro o seu comprometimento com indefensáveis pautas defendidas publicamente há décadas.
Cabe a nós, coletivamente, impedir o avanço da cavalaria bolsonarista.
André Carreira, 38, É professor e doutorando em História Social na USP, em São Paulo – SP