Bernhard
Algumas pessoas já me perguntaram como é possível que eu não tenha lido Thomas Bernhard. Há anos, lembro, por exemplo, do Eduardo Lanius (o que terá acontecido com Lanius?). Pois é. Tive a chance de constatar mais uma vez que minha ignorância sempre me dá grandes alegrias. Estou feliz de nunca ter lido Thomas Bernhard porque tive a chance de ler pela primeira vez Thomas Bernhard. No último dia de 2013 era o que eu estava fazendo e é o que estou fazendo até hoje. Li “Origem” (Companhia das Letras, 2007). Sim, li Origem. Li Origem e só quem leu Origem entende o que significa ter lido Origem. Flávio Aquistapace, que costuma aparecer em minhas aulas, deu-me de aniversário em 2013. Também ele estava perplexo. Olhou-me com um sorriso de dúvida, uma malandragem e uma ponta de ironia, tudo ao mesmo tempo, enquanto me anunciava o conteúdo do pacote. Ontem comecei a ler Extinção. Peguei o exemplar de uma pessoa que já leu tudo de Bernhard e também se espanta que eu não o tenha lido. Estou lendo Extinção. E posso assegurar que nem mesmo quem leu Extinção sabe o que isso significa. Por enquanto, é o que eu penso sobre Extinção ao mesmo tempo que penso sobre o que será de mim quando acabar de ler Extinção.
Estou lendo Thomas Bernhard e nada mais me interessa. Em viagem (não viajo de férias, viajo de fuga, por isso não posso dizer onde estou e só escrevo esse post porque a troca de leitura, entre leitores, é uma questão de generosidade, aquela que separa a vida da morte) temo não encontrar outro Bernhard antes de voltar pra casa. Economizarei as palavras. As dele diante das quais as minhas não são mais nada. Lembro de minha amiga Maria Tomaselli, austríaca como ele e de quem, recentemente, li as memórias ainda não publicadas… Ele, querida Tomaselli, não tinha pena de ninguém, definitivamente ninguém… Se ela, a Tomaselli, ler esse post saiba que deve correr a alguma livraria e ler a coisa toda em alemão. Bernhard achava que um livro traduzido não é o livro do autor, mas do tradutor…
Quando eu terminar, voltando pra casa, talvez eu possa contar o que aconteceu na minha leitura desses livros. Mas adianto para quem não leu que é a coisa mais inacreditável desde Kafka e Dostoievski. Ao mesmo tempo, apenas sugiro que aquele que não conhece o sentimento da abandono, quem não conhece o ressentimento e nunca se ocupou com a questão da dignidade humana, sugiro que fique longe de Bernhard. Não toque nesses livros quem costuma se sentir ofendido por pouca coisa. Quem simplesmente opõe otimismo e pessimismo, Deus e Diabo e costuma achatar o mundo sob o efeito de um projeto de aniquilação geral do pensamento livre, quem está acostumado a traduzir a vida com seu olhar bem comportado, que fique longe dele. Pessoas assim não podem ler Thomas Bernhardt. Elas podem sentir muita raiva. Que vão ler sua revista de fofocas, seu best seller culto, seu jornal – tudo isso que vem cheio de letras e sem ideia alguma – e nos deixe em paz no silêncio que nos concede Thomas Bernhard. Um silêncio sem o qual é impossível respirar nesse mundo.
(1) Comentário
Belíssimo texto, Márcia Tiburi.