Bacurau: o osso da revolta

Bacurau: o osso da revolta
Sonia Braga como Domingas, em Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles (Foto: Victor Jucá)

 

Os fotogramas não mentem jamais. Há quem diga que o semiólogo francês Roland Barthes preferia a fotografia ao cinema. Entretanto, nos ensaios iniciais de seu livro O óbvio e o obtuso, ele se dedica a algo que fica no meio do caminho entre as duas artes, iluminado das duas: analisa alguns fotogramas, a unidade de imagem mínima dos filmes em película, de Sergei Eisenstein. Parte de níveis mais superficiais de leitura – o informativo, o simbólico – para ir chegando a um terceiro, de maior ambiguidade e tensão. Aproxima-se ao que ele chamará de o terceiro sentido. Para além do óbvio, diz Barthes, que em Eisenstein é sempre a revolução, há nas imagens um sentido outro, suplementar, de mais difícil captação, que ele chama de obtuso. Sem nem chegar a pensar na narrativa dos filmes, os fotogramas seriam, eles mesmos, unidades de grande significação.

Ao assistir o novo filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, Bacurau, alguns fotogramas eloquentes persistem na memória: (1) um carro cheio de corpos metralhados; (2) o olhar de júbilo nos olhos de uma mulher vestida de esportista, com uma arma nas mãos; (3) a carteira de identificação de um membro do judiciário brasileiro sobre seu corpo morto e sangrando. Todas essas imagens mostram o óbvio: trata-se de um filme que nasce do chão da história contemporânea do Brasil. Porém há outros fotogramas ainda: (1) algumas cabeças gringas expostas na soleira de uma porta; (2) o interior de um museu do cangaço; (3) um homem seminu com uma máscara ritual, amarrado e montado de costas no lombo de um burro – que indicam que para além do Brasil contemporâneo, o filme evoca uma memória da revolta no nordeste do cangaço.

Entretanto, é noutro fotograma que parece residir o núcleo do distúrbio: o olhar injetado de um rapaz andrógino, sem camisa, o corpo coberto de correntes douradas e outras joias, o dorso respingado de sangue. De esguelha, surge o herói de Bacurau, o estopim da revolta popular.

Para além das imagens perturbadoras, há imagens, tomadas e sons que nos remetem ao cinema novo, a começar por um verso que se repete, que nos chega pela voz de Geraldo Vandré, diretamente da trilha sonora de A hora de a vez, de Augusto Matraga (Roberto Santos, 1965): “Se alguém tem que morrer, que seja pra melhorar”. A morte nos ronda. Para além do diálogo com a adaptação cinematográfica do conto de Guimarães Rosa, há um outro filme (haveria muitos) a aproximar de Bacurau: o minimalista Dogville (2003), de Lars Von Trier – em que vemos a gênese da violência no microcosmo de uma comunidade na qual todos se conhecem e não existe a dimensão do anonimato.

Se em Dogville o mal se originava no seio da própria comunidade, a Bacurau de Kleber Machado e Juliano Dornelles – igualmente minimalista – evoca outra coisa: o povoado está sempre acossado por um olhar externo, não de um outro povoado, não de um mero invasor, mas o olhar de alguém que se arroga direitos sobre a comunidade, que a vê de fora e a objetifica – o olhar do colonizador: seus governantes e seus inimigos se confundem e todos são forasteiros, mas nunca serão anônimos.

Passando do registro regionalista ao da ficção científica para finalmente chegar a uma distopia-realista, o filme tem o grande mérito de nos deixar, espectadores, atônitos, nunca muito certos quanto ao que estamos assistindo. Toda a parte inicial, mais lenta, vai exibindo a cidade sertaneja e seus habitantes sem oferecer nenhum grande conflito que pareça ser o nó da trama. Tem-se a impressão, tal como ocorria em O som ao redor (2012) – seu longa de estreia – de se estar num conto de Tchékhov, em que há tensão e algo está sempre por acontecer, sem que se possa definir com clareza o quê. Mas se em O som ao redor, filme sobre a nova classe média que surgiu durante os governos do PT, tudo se esclarece e explode na cena final, em Bacurau se trata de um mal insidioso, que vai sendo desvelado pouco a pouco.

O filme é uma distopia sobre um local no qual triunfaram as políticas de extrema-direita, e no qual não há estado de bem-estar social em nenhuma dimensão: comida, remédios e livros são entregues pela prefeitura como lixo, como um favor pessoal do mandatário. Igualmente, os aliados da comunidade agem na base do favor: a garota que vem do sudeste traz vacinas na mala; os potenciais protetores do bairro são de alguma espécie de gangue ou milícia. A pena de morte foi instituída no Brasil do Sul e as execuções são anunciadas na tevê. Nesse lugar onde tudo já aconteceu e o que resta são ruínas, os membros da comunidade estabelecem uma rede de apoio mútuo.

Silvero Pereira as Lunga 2 _ Victor Jucá
Silvero Pereira como Lunga, o herói de Bacurau (Foto: Victor Jucá)

Assim, surge a questão: quanto de violência uma comunidade ou um povo sempre tomado pelo olhar do outro como festivo e pacato pode receber antes de se revoltar? É sobre isso o filme: sobre uma resistência que passa ao largo do slogan infantilizado “Ninguém solta a mão de ninguém” e que descortina um Brasil insurgente que não é mais o dos anos 60, que tinha nos ícones da revolução socialista sua simbologia. Em Bacurau, quem articula a comunidade é o microfone do Sound System de um DJ, as mensagens da travesti do cabaré que fica na entrada da cidade, e a população que se arma no museu do cangaço. Se forem precisos reforços aí está o rambo da quebrada, que na sua androginia renega a hipermasculinização que caracteriza os heróis da extrema-direita.

Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, enfim, fazem um filme que escapa das saídas convencionais, justamente porque retira o povo do lugar de vítima indefesa, sem tampouco fazer a apologia das armas. “Se alguém tem que morrer, que seja pra melhorar”, repete a voz grave de Vandré. Há diferentes modos de matar, o filme nos ensina: as mortes por esporte do grupo de turistas norte-americanos que aproveitam que Bacurau não figura mias no mapa, e a outra: a da defesa, aquela que pode inclusive ser ritual. O tênue limiar entre a justiça e a vingança que o mundo antigo dos trágicos nos legou se faz ainda mais atual no momento presente, em que o direito e a justiça como que se suspenderam.

A comunidade de Bacurau sabe que chega um limite no qual é preciso se posicionar e defender os iguais – buscando não a aniquilação do outro, mas a implantação de uma nova institucionalidade. Não se mata por prazer, não se comemora a morte como um gol, mata-se porque é preciso. Numa palavra: Bacurau é o filme da revolta, feito com delicadeza de quem não se orgulha de ter de lançar mão de recursos extremos, mas que tampouco vacila em usá-los. Um filme que capta na aparente apatia social dos dias atuais uma força mobilizadora de onde algo possa advir. Um filme obrigatório, portanto.

Wilson Alves-Bezerra é crítico, tradutor e escritor. Escreveu Vapor barato (Iluminuras, 2018), O pau do Brasil (Urutau, 2016), entre outros

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