O eixo das babás no enredo da sexualidade

O eixo das babás no enredo da sexualidade

 

Trazendo alguns problemas psicanalíticos sobre sexualidade infantil de meninos pequenos de família burguesa e frequentemente branca, o interesse de fundo deste texto é abarcar a complexidade dos marcadores de classe, raça e gênero, imprescindíveis para pesquisas da atualidade. Como tratei na coluna da Revista Cult em Freud entre duas mulheres: implosão do Édipo e conflito de classes e em O ‘pretuguês’ na psicanálise: reflexões de Lélia Gonzalez, a importância das babás na formação da subjetividade reformula a estrutura triádica edípica ao incluir uma imagem duplicada da mulher: mulher-mãe e mulher-babá (uma não existe sem a outra nos lares burgueses do século XIX). Adensar essa dupla de mulheres pode ser importante para o feminismo interseccional e no combate contra o patriarcado colonial.

Além da narrativa feita por Freud a Fliess sobre sua constituição subjetiva a partir da figura de sua babá tcheca Monika Zajic, nota-se a importância deste polo da estrutura familial burguesa tanto no “Homem dos Lobos” como no “Homem dos Ratos”. No caso especificamente deste, a figura da babá aparece do seguinte modo no relato do paciente:

Minha vida sexual começou bastante cedo. Lembro-me de uma cena de quando tinha quatro ou cinco anos de idade (a partir dos seis minha lembrança é completa), que anos depois me veio claramente à memória. Tínhamos uma governanta jovem e muito bela, a srta. Peter. Uma noite, ela lia, deitada no sofá, com roupas leves; eu estava a seu lado e pedi que me deixasse entrar sob sua saia. Ela o permitiu, desde que eu não falasse a ninguém sobre isso. Ela estava com pouca roupa, e eu toquei nos seus genitais e no ventre, que me pareceram esquisitos. Desde então sinto uma curiosidade ardente, dolorosa, de ver o corpo feminino. Ainda lembro com que tensão eu aguardava que, ao nos banharmos (o que ainda podia fazer com a senhorita e minhas irmãs), ela se despisse e entrasse na água. A partir dos seis anos lembro-me de mais coisas. Tínhamos então uma outra governanta, também jovem e bonita, que tinha abscessos nas nádegas e costumava espremê-los à noite. Eu esperava por esse momento, para saciar minha curiosidade. A mesma coisa no banho, embora a srta. Lina fosse mais reservada do que a primeira. Recordo uma cena em que eu devia ter sete anos de idade. Estávamos juntos, uma noite, eu, meu irmão que é um ano e meio mais jovem, a senhorita, a cozinheira e uma outra garota. De repente ouvi, na conversa das garotas, a srta. Lina dizer: ‘Com o menor dá para fazer, mas Paul (eu) é muito sem jeito, não acerta’. Não compreendi bem o que queriam dizer, mas senti o menosprezo e me pus a chorar. Lina me consolou e disse que uma garota, que fizera algo assim com um menino do qual cuidava, havia passado vários meses na prisão. Não creio que ela tenha feito algo errado comigo, mas eu tomei liberdades com ela. Quando ia para sua cama, eu a descobria e a bolinava, o que ela consentia sem nada dizer.

Assim como relatos de abusos e assédios das mulheres histéricas de Freud talvez não fossem tão fantasiosos – Dora já o indicava, mas hoje o #metoo o demonstra –, também há relatos recorrentes de pacientes homens que, quando meninos, tiveram experiências sexuais precoces que bem podem ter deixado marcas traumáticas. Entretanto, a maneira pela qual os traumas são engastados na malha psíquica e se convertem em dinâmicas sociais também depende de narrativas capturadas psiquicamente na esfera simbólica da linguagem, moldada pelos contornos formais do patriarcado. Enquanto o registro da violência perpassa a experiência de mulheres, nomeada como abuso, assédio ou estupro, a de meninos pequenos com mulheres é narrada em voz ativa, como se estes fossem agentes precoces e desbravadores sexuais. Essa diferença, pouco abordada, já indica a binaridade prematura na estrutura patriarcal; nesse esquema, pode-se pensar que meninos da burguesia tivessem algum atrativo para as trabalhadoras domésticas por seu poder inerentemente “natural” – apenas a passagem do tempo seria suficiente para garantir a sua manifesta consolidação; de outro lado, embora as babás e as trabalhadoras domésticas (em tempos coloniais ou não) tivessem papéis essenciais para a estruturação burguesa, nada além da venda barata ou não paga de sua força de trabalho reservava-se a elas na troca social.

Como assinalam Isildinha Baptista Nogueira e Frantz Fanon, a imagem do corpo estrutura a identidade do sujeito, sendo o estádio do espelho, tal como pensado por Lacan, a etapa primordial na estruturação de um Eu imaginário. A criança se reconhece pela sua imagem virtual e pelo olhar de reconhecimento de sua existência no desejo do Outro. Essa unidade egóica, que confere uma conformação totalizante – ainda que imaginária – ao sujeito, é vivida de modo inteiramente diferente pela pessoa negra do século XIX – e talvez ainda hoje por muitos/as – e pela pessoa de baixa renda. No campo simbólico patriarcal-imperialista, que dá consistência à linguagem do Outro, não há sinal de reconhecimento da existência negra ou da pobre; o olhar desejante do Outro – que não é neutro – é cego para a validação de seus campos imaginário e simbólico enquanto sujeitos de desejo.

Entretanto, o menino burguês branco, que recebe os cuidados extremamente dedicados da babá, talvez olhe para essa mulher com olhos desejantes e amorosos; o reconhecimento de sua imagem egóica enquanto sujeito-mulher se dá pelo olhar que ainda não está cooptado pelo circuito de trocas do patriarcado colonial. Lélia González mostra a posição da população negra em paralelo à da criança, o que pode indicar a teia identificatória entre o menino e a mulher trabalhadora do lar: “temos sido falados, infantilizados (infans, é aquele que não tem fala própria, é a criança que se fala na terceira pessoa, porque falada pelos adultos)”.

Ver-se validada pelo olhar infantil, vingar-se da exploração dos patrões e obter pequenos prazeres nas brechas do trabalho árduo, mal remunerado (ou nem mesmo pago) e não reconhecido, podem ser algumas das razões pelas quais tais relações eróticas com meninos pequenos lhes parecessem atraentes ou comuns; outro motivo pode ser a rivalidade e o jogo de força pelo poder com a patroa burguesa, destituída, pelo marido obsessivo, de sua potência erótica como mulher. Seja como for, as experiências precoces e violentas da sexualidade concatenavam-se no interior de tal estrutura. Na era colonial, a realidade das mulheres escravizadas em ambientes domésticos era tal como a descreve bell hooks:

O sexismo dos patriarcas brancos do período colonial poupou homens negros escravizados da humilhação do estupro homossexual e de outras formas de assédio sexual. Enquanto o sexismo institucionalizado era um sistema social que protegia a sexualidade dos homens negros, ele legitimava (socialmente) a exploração sexual das mulheres negras. A mulher escravizada vivia sempre atenta à sua vulnerabilidade sexual e em permanente medo de que qualquer homem, fosse ele branco ou negro, pudesse escolhê-la para assediá-la e vitimizá-la. Linda Brent expressou consciência da condição angustiante da mulher negra ao narrar sua experiência como escravizada: A escravidão é terrível para os homens, mas é muito mais terrível para as mulheres. Além do fardo comum a todos, há maldades, sofrimentos e humilhações peculiares a elas. Esses sofrimentos peculiares às mulheres negras eram diretamente ligados à sexualidade e envolviam estupro e outras formas de assédio sexual. Mulheres negras escravizadas eram habitualmente estupradas quando tinham entre 13 e 16 anos.

Nada disso foi apagado por completo nos dias atuais. Por isso, vale notar como essa experiência coloca a sexualidade em lugares traumáticos e imaginariamente intrincados. Em sua aliança neurótica com o marido obsessivo, a mulher histérica burguesa talvez invejasse a possibilidade imaginária e fantasiosa de viver o desejo de maneira mais livre e vender a força de trabalho – por mais explorada que esta fosse – como forma de existência não acoplada à aliança com um marido que não a via como sujeito e que invariavelmente a apagava em seu desejo erótico ou articulado à dimensão política da existência – isto é, à dimensão adulta. Tal imaginário acirrava vinganças e rivalidades, sempre ambivalentes entre essas mulheres de diferentes classes que, por outro lado, se reconheciam nessas variações nas formas de opressão de gênero.

Em A sedução e as artimanhas do poder, Saidyia Hartman estuda os sistemas de jurisdição no período de escravidão estadunidense, mostrando o paradoxo reservado às mulheres escravizadas. No caso judicial conhecido como Estado de Missouri vs Célia, a autora indica como o consentimento para que houvesse relação sexual entre mulheres escravizadas e seus senhores simplesmente não se inscrevia como condição para que acontecesse ou não o sexo entre eles. Como objetos, a elas não estava preservada a suposição de capacidade deliberativa sobre sua vontade. Por outro lado, quando Célia assassinou seu senhor após ele tê-la estuprado por quatro anos consecutivos, sua vontade passou a valer para a penalização criminal e ela foi condenada pela suprema corte. O discurso da sedução dotava de força a fraqueza da mulher oprimida. Justificava violações sexuais e revanches de mulheres brancas que viam seus maridos obcecados pelo que lhes parecia escapar às regras que orientavam a engrenagem produtivista do Capital, embora claramente estivessem em seu cerne constitutivo desde o início.

Nessas densas camadas que sustentam o patriarcado colonial, o poder de homens brancos heterossexuais de classe alta também precisa ser pensado em seus processos de formação por séries repetitivas. Aqui vimos como o menino branco já nasce com um poder que lhe parece mágico e sem prerrogativas. O olhar da babá o confirma, mas ele não sabe muito bem como responder a tal suposição, evidentemente equivocada. Sem serem propriamente heróis, os meninos pequenos, ao perceberem seu poder aleatório – não tinham feito nada para conquistá-lo, além de terem nascido em lar burguês – e terem de exercê-lo de forma precoce e sexualmente invasiva e traumática, muitas vezes respondem, já na vida adulta, violentamente no interior de tal arranjo. Nesse quadro estrutural, o patrãozinho supostamente conserva mais poder que uma mulher capaz de executar as mais sofisticadas atividades intelectuais, afetivas e corporais. Se com o menino pequeno a dinâmica erótica muitas vezes podia forjar uma espécie de poder para as mulheres trabalhadoras, com homens adultos casos de assédio e abuso em relação às mulheres escravizadas no período colonial reafirmavam efetivamente o poder dos senhores de engenho e proprietários de terras.

Indicar esses intrincados processos e mediações em certa medida expostos e ao mesmo tempo velados pela psicanálise não visa justificar ou minimizar a responsabilidade dos atores que compõem diferentes cenas de violência, mas pretende antes indicar como julgamentos morais abstratos, destituídos de densidade material e histórica, perdem de vista os meandros das formações sintomáticas psíquicas, sociais e políticas.

Alessandra Affortunati Martins é psicanalista e doutora em Psicologia Social e do Trabalho pela USP. Autora de Sublimação e Unheimliche (Pearson, 2017), A abstração e o sensível: Três ensaios sobre o Moisés de Freud (E-galáxia, 2020) e organizadora de Freud e o patriarcado (Hedra, 2020).


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