Avenida Paulista: Procissão nº4
Militar na manifestação do último domingo (4) na Av. Paulista; ao lado, Flávio de Carvalho na Experiência nº 3, em 1956 (Fotos: Reprodução)
Um passeio pela manifestação do dia 4/12 na Av. Paulista pelos olhos de um artista performático usando roupa vermelha e boné do MTST
4 de dezembro de 2016. Flávio de Carvalho, o artista, provocador e performer, volta a Avenida Paulista, 85 anos depois de sua Experiência nº2 pelas ruas de São Paulo disposto a fazer um novo experimento sobre a psicologia das multidões. Sentia no ar a mesma excitação e inquietação de 1931, quando andou em sentido contrário a uma procissão de Corpus Christi pelas ruas de São Paulo com uma boné na cabeça, o que era considerado uma afronta e um desrespeito pela multidão temente a Deus. Não se podia andar em uma procissão cobrindo a cabeça. Flávio enfrentou a turba e quase foi linchado.
Agora queria testar a psicologia da multidão verde-amarela, afinal, 85 anos depois, o Brasil era outro. O Estado supostamente laico, atravessamos uma ditadura militar, redemocratizamos o país, tivemos uma década de euforia e autoestima com os governos progressistas, sofremos um golpe jurídico-midiático, certo, mas o impeachment, a crise, a indignação dos muitos, tudo estava “dentro da legalidade” e do controle, repetiam. O Brasil estaria mais tolerante e arejado? Veríamos!
O domingo estava radiante! Havia um ar festivo por toda parte. Reflexos de luzes ofuscantes na avenida esvaziada de carros. O sol era multiplicado ao infinito pelos espelhos verticais que agiam como rebatedores gigantes da luz que iluminava ciclistas, skatistas, passantes, grupos de turistas, mulheres, homens e crianças saltitantes. A luz vívida do sol destacava as primeiras camisas amarelas da CBF que chegavam na Paulista. Era dia de Manifestação contra a Corrupção!
O artista excitado e intrigado pôs-se a andar na direção do MASP, onde iria se concentrar a multidão que começava a aflorar portando símbolos, discursos, cartazes, palavras de ordem, certezas. Iria testar os limites de civilidade e tolerância de um ato “democrático, pacífico e civilizado”.
Contemplou por algum tempo a chegada dos manifestantes. Era 14h na altura da Praça dos Ciclistas, percebia “um movimento estranho de fé verde-amarela emergindo” enquanto buscava uma ideia para repetir a experiência de 1931. O que pretendia? Anotou no seu smartphone estas poucas linhas:
“Desvendar a alma dos convictos protestantes por meio de um reagente qualquer que permitisse estudar a reação nas fisionomias, nos gestos, no passo, no olhar, sentir enfim o pulso do ambiente, palpar psiquicamente a emoção tempestuosa da alma coletiva, registrar o escoamento dessa emoção, provocar a revolta para ver alguma coisa do inconsciente.”
Deu meia volta, andou rapidamente em direção a estação do Metrô da Consolação, submergiu nas escadarias e meia hora depois voltava munido de um saco plástico misterioso. Começava a experiência antropológica!
Flávio de Carvalho principiou andando timidamente pelas laterais da Paulista. Os primeiros grupos engrossavam a rua andando na direção do MASP: famílias inteiras, casais, crianças, homens e mulheres com chapelões de palha, bonés, cara pintada de verde e amarelo, senhoras e senhores enrolados em bandeiras do Brasil como um manto sagrado de super-heróis rumavam para a concentração.
Os intocáveis
Os cartazes passavam com alguns dizeres: “A luta contra a corrupção não é partidária, viva Moro e a Polícia Federal”. O cartaz era levado por dois homens: um senhor de formas arredondadas, camisa amarela e calça verde, com chapéu de palha gigante e um outro sorridente e elegantemente vestido de terno preto e chapéu de feltro com uma faixa com as cores da bandeira norte-americana.
A dupla parecia uma encarnação paródica da crença que seria possível um “united colors” anticorrupção abstrata, uma espécie de religião universal do reino da limpeza moral do país que reuniria esquerdas e direitas em uma aliança nacional contra um estado de corrupção endêmico. O problema é que o discurso anticorrupção, decisivo para as esquerdas e incontornável, ganhava uma entonação autoritária e arbitrária, na versão verde-amarela.
“Moro é Intocável”, dizia um cartaz. “A Lava Jato Vai Salvar o Brasil”, dizia outro. “Somos todos Moro”. Bonecos do juiz Sérgio Moro vestido de super-herói se multiplicavam e eram vendidos como pãozinho quente pelos camelôs.
O cartaz de apelo suprapartidário contradizia os organizadores da procissão verde-amarela. O MBL e o Vem Para a Rua, dois dos principais organizadores dos atos, tinham mandado um inequívoco recado: Manifestantes de esquerda e contra o presidente tampão Michel Temer, não seriam bem vindos neste domingo. “Nós não temos nenhum interesse de tirar o Temer do poder”, afirmara Chequer do Vem Pra Rua em vídeo.
A mensagem era: Queremos tirar Renan Calheiros, Rodrigo Maia, mas manter toda a estrutura igualmente corrupta que levou ao impeachment de uma presidenta eleita. Queremos prender Lula.
A procissão anticorrupção tinha lado e vocalizava os anseios de agentes e atores políticos, Ministério Público, juízes e procuradores, os heróis da Lava Jato que se colocavam acima das leis na sua missão redentora e salvadora da nação.
Enquanto se entretinha com seus pensamentos flutuantes, Flávio é despertado com um grito ensurdecedor:
– “Abaixo a políticaaaaaaaaaaaa!!! Abaixo os políticos!” O grito estridente nocauteou os ouvidos do artista, vindo de um carro de som. E o discurso que se ouviu lembrava uma cruzada santa contra o demônio. As metáforas oscilavam entre a satanização e o assujeitamento:
“Nós somos os patrões dos políticos. Eles são nossos empregados e têm que cumprir o que nós queremos. A política é uma maçã podre, todos os políticos são uns sem-vergonha, corruptos, salafrários! Temos que jogar fora o cesto inteiro das maçãs! Dilma foi a primeira maçã podre que conseguimos tirar do cesto, agora é jogar fora todo o petismo, todos os vermelhos que estão contaminando o restante. Nada que vier desse campo presta, vai apodrecer tudo.” E um novo grito de guerra:
– “Vocês querem limpar o Brasil? Vocês querem acabar com a corrupção? Abaixo a políticaaaaaaaaaaaa!” Aplausos entusiasmados e rostos de satisfação enchiam a avenida.
Uma pausa para respirar, depois da catarse, e a voz anunciava: “Agora vamos ouvir o Procurador de Justiça de São Paulo. Fala doutor!” Antes do excelentíssimo pegar o microfone alguém se adianta e brada:
“Mexeram com os Magistrados e Procuradores. Se danaram, pois transformaram os Juízes em muitos ‘Sérgios Moros’, Brasil afora. Não vai ter cadeia para colocar todos esses bandidos. Quem sabe uma corda no pescoço resolve o problema de espaço. E nenhum brasileiro sentirá a falta desses ladrões”.
Aplausos delirantes. Nascia uma nova versão do “bandido bom é bandido morto”. O alvo agora eram os políticos. Mas e as construtoras? Os empresários, os corruptores? A mídia? O judiciário? A polícia que mata de forma arbitrária? Não tinham sido escaldos para o psicodrama coletivo, pontual e seletivo.
Flávio de Carvalho se apressa e passa para o outro lado da rua a tempo de fotografar um homem com uma camiseta onde está escrito: “Exército de Cristo. Aliste-se” . Nas imediações havia um outro palanque. Eram os “intervencionistas” pedindo a volta dos militares em faixas e discursos. Gente estranha, pensou o performer, reclamam da “ditadura” de Fidel Castro em Cuba e pedem “intervenção militar já” no Brasil!
Andou um pouco mais e de repente viu ao seu lado um senhorzinho de gravata borboleta e ar doce, com seus cabelos brancos alinhados, terno, e um capacete militar com um dístico da bandeira do Brasil. O senhorzinho em desfile na Paulista era o o torturador Carlos Augusto Metralha, braço direito do delegado Sérgio Paranhos Fleury, assassino da guerrilheira Soledad Viedma, em plena gravidez.
O respeitável torturador descrevia sua indumentária, como em uma performance escandalosa do próprio Flávio de Carvalho, quando desfilou de saia pela Avenida Paulista. Agora se deparava com uma outra performance, das ruas de 2016, só que terrivelmente anacrônica. Ouviu estarrecido o torturador conceituar e defender sua “intervenção urbana” na Paulista, gravada por uma jornalista e midialivrista que provocava o vaidoso senhor a discursar:
“ O capacete é a minha homenagem às vítimas dos terroristas. O Estado tem o dever de proteger a sociedade e não está protegendo. A gravatinha borboleta é uma homenagem aos familiares das vítimas desses terroristas. Me visto assim da forma mais decente para entrar nas casas das famílias, porque eu sou civil e não militar. Nunca houve tortura no Brasil. É a esquerda que prega isso. Não houve também ditadura. Ditadura é em Cuba, Coréia, esses países comunistas. Tivemos quatro governos militares eleitos pelo Congresso.”
Corta! O senhorzinho expressava o pensamento de muitos ali: “Estamos sendo governados por esquerdistas e revanchistas com objetivo só de roubar.” Era ouvido por uma senhora que portava uma fantasia de carnaval, dessas compradas nos camelôs. Estava de policial. Quepe preto com estrela, cassetete na mão e uma algema gigante. A senhora bradava a algema no ar gritando: Moro, pega ladrão! Moro, pega ladrão! Moro pegaaaaaaa!
Estátuas vivas
O cortejo se adensava. Outro grupo com indumentárias militares subia em um pedestal de cimento e posava para fotos, como as estátuas vivas dos artistas de rua. Flávio de Carvalho admirava a performance e as “fantasias”. Uniforme de guerra camuflado, uniforme verde-oliva, calças cáqui e um menino de cantil e uniforme batendo continência para os passantes.
Happening militar que imitava as estátuas vivas, com pausas entre os movimentos, controlavam o corpo, as mímicas, prendendo a atenção dos manifestantes que fotografavam extasiados. Flávio de Carvalho meditava sobre a autoperformance do grupo, e como suas experiências pioneiras, desmistificadoras, disruptivas tinham em 2016 um destino tão inglório.
Quanto fez seu Experimento n. 3, em 1956, passeando de saia pelas ruas de São Paulo, logo foi seguido por uma pequena multidão perplexa. Flávio de Carvalho sabia que sua indumentária tropical para homens, desafiando as convenções, era um happening, uma festa consciente de revolta contra convenções a serem superadas. Não poderia imaginar que, em 2016, atores sociais ainda poderiam nos chocar ( e seduzir outros) apresentando a ditadura militar e seus uniformes, como uma proposta “retro-vanguardista”.
Se possível não exista
O homem que inventou o happening no Brasil estava impressionado com a importância das performances, agora transmitidas em tempo real e apresentadas como o suprassumo da democracia. Foi quando viu um grupo de mulheres exaltadas com bandeiras que criminalizavam o aborto. “STF condene os corruptos e não os bebês”; “Como legalizar a morte se queremos a vida”; “Juízes votam a favor do assassinato de bebês”. A manifestação ia contra todos os discurso de autonomia das mulheres diante do seu corpo, pedindo uma intervenção do Estado contra os direitos e liberdades.
Flávio de Carvalho fez uma foto das mulheres indignadas e das faixas gigantes e lembrou de um texto, de Rafael Castilho, que poderia desconstruir todo esse discurso francamente conservador e que dizia assim:
“Não aborte. Mas se você for pobre, não saia fazendo filho por aí para que eles dependam de esmola do governo. Então previna-se, mas não seja vagabunda de levar camisinha na bolsa. Não dê no primeiro encontro. Não use roupas apertadas e não provoque desejo indiscriminado nos homens. Não dance funk. Não queira merecer um estupro. Mas, caso seja estuprada, ainda sim não aborte. Não aborte, não tenha filhos por aí, não seja vagabunda, não dê, não provoque desejo. Se possível não exista.”
Estava na hora de colocar o seu próprio corpo na multidão e fazer o experimento que tinha se proposto. Uma intervenção urbana na Avenida Paulista no dia das manifestações contra a corrupção. Agora começava a Experiência nº.4
Quanto mais simbólica fosse sua indumentária, mais eloquente seria o impacto na massa. Tirou então, performaticamente, do saco plástico, uma blusa de náilon vermelha, um saiote com pregas com meia-arrastão e sandálias de couro e um boné ostentoso do MTST. Era o modelo repaginado da suas duas performances originais, em que tinha enfrentado a multidão religiosa no Corpus Christ e quando desfilou de saia escandalizando as ruas com o “traje do homem tropical”.
Tinha chegado em frente ao palco principal das manifestações, nos arredores do MASP. O palco trazia faixas homenageando Moro, exaltações a Lava Jato, balões verde-amarelos e estava ladeado por dois bonecos gigantes vestidos de presidiários. Os pixulecos do ex-presidente Lula da Silva e o boneco do líder do Senado, Renan Calheiros que olhavam fixamente para Flávio de Carvalho. Foi tomado de horror e frisson!
Ouviu um grito, agora vindo do palco!
– “Família brasileiraaaaaaaa! Estamos aqui sem vandalismo. Sem baderna. Sem pixação. Sem mascarados. Sem agressões. Sem molotov. Sem queimar carro. Sem barricadas. Essa é a nossa revolução ordeira. Nós conseguimos tirar a maçã podre do saco! Vamos acabar de desratizar e despetizar o Brasil. Quem aqui quer despetizar o Brasil, gente?” Ouviram-se urros, gritos e aplausos!
– “Aqui alguém defende essas invasões das escolas, gente? Não podemos aceitar essa cambada de vagabundos que se diz estudante invadir escola! E esses professores? Querem fazer a cabeça do seu filho, do seu sobrinho, do seu neto. Vocês vão deixar? Vocês vão deixar???”
– “Nãoooooooooooo!!!!!Entoava a multidão exultante.
-“Vamos desocupar as escolas, gente! Alguém viu o que aconteceu em Brasília, gente? Os manifestantes contra a PEC 55 esfaquearam um policial, gente! São uns vândalos! Sindicatos, CUT, MST, MTST, professores, são uns vagabundos gente! Vocês souberam? Queremos um Brasil limpo dessa gente! Vamos desratizar o Brasil!
Enquanto ouvia os discursos, Flávio de Carvalho foi cercado por uma pequena multidão. Um homem gritou: “Tem um vermelho aqui! Tire essa camisa vermelha e esse boné! Ou sai da manifestação”. “Ele está de saia”, gritou outro, “deve ser um desses professores que ensinam gênero para as nossas crianças. Um pervertido, isso sim!”
O artista olhou para os lados fingindo não escutar. Quando uma outra voz engrossou e aumentou o tom. “Vocês estão vendo esse homem de vermelho, gente?” Mil olhos olharam em sua direção. “Tira esse boné e essa camisa ou sai da nossa manifestação”. Apesar dos gritos para que o artista se descobrisse em sinal de respeito, tirasse a camisa e o boné, ele não o fez, e começou a penetrar na manifestação em sentido contrário, provocando-os e aumentando a hostilidade.
A multidão então, volta-se contra ele e, em coro crescente, começa a gritar: “Expulsa, expulsa! Fora comuna!”. Para livrar-se de um ataque iminente Flávio de Carvalho corre em disparada até chegar em um boteco e entra no banheiro. Era um bar de refugiados nas imediações. Fica lá até um policial que acompanhava o tumulto e o seguia vir “resgatá-lo”. É preso sem saber porque e se justifica dizendo que estava realizando uma “experiência sobre a psicologia das multidões”.
Em seguida é liberado e acusado pela polícia tão somente de baderneiro e provocador. Tira o boné do MTST, troca a camisa vermelha e vai para a Rua Augusta onde sua saia sobre pernas masculinas com uma meia de arrastão preta passa despercebida. O Brasil tinha mudado em algum lugar! Havia uma revolução dos costumes! A multidão da rua Augusta, a diversidade dos urbanóides em busca de encontros, sexo, afetos, corpos, o comove! Uma corrente humana que desce e sobe a rua Augusta, como um rio que vem do Éden! Essa era uma outra procissão que lhe devolvia uma parte do mundo explodido na Paulista. Teria que fazer a Experiência no. 5 um dia. Nessa rua hipnotizante!
O chefe invisível e os reagentes
No dia seguinte, ainda atordoado, a Globo News lhe dedica uma matéria: “Uma experiência sobre a psicologia das multidões resultou no único distúrbio deste domingo de manifestações ordeiras em todo o Brasil”. Nem uma palavra sobre tudo aquilo que nosso personagem tinha visto nas ruas e o deixara perplexo!
Flávio de Carvalho decide então fazer uma breve análise do ocorrido para uma rede de mídia livre, deixar algo registrado. Compara as manifestações de 2016 a procissão de Corpus Christi de 1951 e também a uma parada militar e a um estranho happening conservador.
E conclui: todas essas procissões possuem um chefe invisível. Antes era o Cristo, agora é um outro salvador da pátria. A pátria numa parada nacionalista funciona como o Cristo numa procissão. Agora tiraram o Cristo, tiraram a pátria e colocaram um Juiz humano, um Juiz acima do bem e do mal!
Nosso personagem conceitual se pergunta: Como satisfazer ao instinto moralista das classes médias, esses homens e mulheres indignados com a corrupção dos outros, e passíveis tanto de instrumentalizar os demais, quanto servirem de instrumentalização pelas forças econômicas e de todo tipo? Será preciso alguma coisa a mais que essas encenações e performances com pixulecos gigantes nos dias ensolarados de domingo. Será preciso algo mais que um salvador atrás do outro: Cristo, a pátria, os militares, Joaquim Barbosa, a Lava Jato, o juiz Sérgio Moro!
Não temos salvadores de mundos explodidos nem a direita e nem a esquerda. Precisamos de milhares e milhões de pessoas que possam se apresentar como “reagentes” como eu. Provocando com nossa presença, nossos corpos, nossas mídias, textos, afetos, contra-narrativas, perturbando as certezas, perturbando essa piedosa imagem das massas ordeiras, civilizadas, autoindulgentes. Precisamos de mais crise e insurreição para explodir o simulacro de uma democracia domingueira dos chamados homens de bem.