Atualidade das Mitologias?
Os tempos mudaram e a História tomou uma forma assustadora. Os mitos não são mais o problema, a realidade sim
Os textos reunidos sob o título de Mitologias têm meio século. São eles “atuais”? Poderíamos aumentar essa série, no mesmo tom e com o mesmo espírito? Em princípio, sim (com a condição de ter o talento de um Barthes). Pois a publicidade oferece diariamente novos temas e não cessa de inventar novas manhas. Desmontar seus mecanismos e revelar a mentalidade que ela impõe é fazer obra de salubridade pública. A astrologia, como se sabe, é incansável. Quanto ao abade Pierre, o que ele fazia então em pequena escala (pregar a caridade, em vez de trabalhar pela justiça), a televisão o faz em grande, com programas que transformam em espetáculo os “extraordinários impulsos de generosidade” organizados em favor das vítimas de catástrofes naturais.
Entretanto, o próprio Roland Barthes, depois de algumas recaídas, logo renunciou a prosseguir esse exercício. A crítica ideológica, disse ele em 1970, como uma justificativa desse abandono, “sutilizou-se ou, pelo menos, exige ser sutilizada”. A análise semiológica “desenvolveu-se, tornou-se mais precisa, complicada, dividida”, a Doxa (o bom senso, a opinião enquanto norma) se encarrega ela mesma de desmascarar os mitos. Eis uma forte razão de reconsiderar tudo. De que se trata, exatamente? Interpretemos livremente. Há muitos modos de compreender que o mundo analisado em Mitologias é um mundo passado.
Em primeiro lugar, somos sem dúvida coletivamente menos ingênuos do que há 50 anos. A publicidade, aliás, sabe disso, porque ela multiplica os sinais de conivência com um público “que não se deixa enganar”. Ela se torna humorística, maliciosa com relação a si mesma, auto-referencial, trabalhando “em segundo grau”. Uma boa publicidade caçoa da publicidade (mas não se esquece de dizer o essencial: o nome da marca).
Os mitos da vida cotidiana, na França dos anos de 1950, repousavam sobre uma boa dose de alienação, sem dúvida; mas davam também testemunho de um estado de espírito que nos parece, hoje, de uma encantadora ingenuidade. O texto intitulado Conjugais descreve a aspiração a uma pequena felicidade inocente e bem merecida. Saponáceos e detergentes revela os esforços feitos para dar ao usuário um sentimento de suavidade e a fim de contribuir para sua euforia. A inundação de Paris, em 1955, revela-se como uma festa. O Tour de France ciclista é uma epopéia. No fundo, essas mitologias são alegres. Apesar da figura negativa de Poujade, líder dos pequenos comerciantes de extrema direita, a vida é globalmente simpática. O estilo de Barthes se inebria, ao mesmo tempo, com candura das velhas crenças e de seu próprio charme.
Logo tudo mudará. Vem a crise de energia, o desemprego cresce, a morosidade se espalha, o ceticismo se instala, o ódio não pára de aumentar. O Tour de France era uma pitoresca epopéia. A Copa do mundo de futebol é um drama. Parafraseando a fórmula de Carl von Clausewitz (1780-1831), o esporte é doravante a continuação da guerra por outros meios.
É bem verdade que Barthes não esconde suas antipatias. Ele toma como alvo “nosso mundo burguês”. O texto sobre os Marcianos nos mostra aquele traço constante de “toda mitologia pequeno-burguesa”, que é a impossibilidade de imaginar o outro. Pelo menos o mitólogo pode situar-se fora desse mundo fechado sobre si mesmo. Ele não compartilha esse “antropomorfismo de classe”. Como a pequena burguesia é apenas uma parte da sociedade, a revolução permanece no horizonte. Charles Chaplin é “talvez sua forma mais eficaz”. Hoje, as mitologias de ambição barthesiana deveriam ter por objeto mitos ao mesmo tempo mais difusos e mais geralmente compartilhados. O eleitorado de Poujade era, no tempo de Barthes, muito mais circunscrito do que o de Le Pen atualmente.
Os textos de Barthes explicam como a boa consciência burguesa consegue sempre tranqüilizar. No Music-Hall, a facilidade aparente das acrobacias é euforizante. O Strip-Tease é um ritual tranqüilizador (a carne é apagada, a nudez é como uma “vestimenta natural”). A personagem e a obra de Minou Drouet, a menina poetisa, são apaziguadoras: confirmam a infância e a poesia em sua essência. Mas eis que, 50 anos mais tarde, não é mais pelos mitos que tentam tranqüilizar-nos. Eles não bastariam para acalmar o medo do outro: do anormal, do maluco, do louco furioso (o delinqüente, o pedófilo, o serial killer), ou do estrangeiro sub-remunerado que vai nos privar de nossos empregos.
A verdade é que não há mais como se tranqüilizar. Barthes se irritava ao constatar por toda parte o recurso ao “natural”, ao “óbvio”. A crença na natureza mascarava o trabalho da História. Agora, a consciência da historicidade está adquirida. Somente a História tomou uma forma assustadora. Os mitos não são mais, na verdade, nosso problema. A realidade é muito visível e muito temível. Em Os romanos no cinema havia a confusão desonesta entre os signos fabricados e uma pretensão ao natural. Mas agora sabemos todos que o “natural” é composto (tecnicamente, cientificamente). Estamos todos muito conscientes de que os tempos mudam, e de que a História nos compõe e nos decompõe.
A grande atualidade das Mitologias de Barthes é a de nos dar, muito claramente, a imagem de um mundo que se inverteu. Pudéssemos nós ter um outro Barthes, se possível no hemisfério inverso, para ajudar-nos a “tratar” (e não apenas a decifrar) nossas obsessões mais precisas.
(Tradução de Leyla Perrone-Moisés)
Jean Galard
é filósofo e ensaísta, foi professor na USP e Diretor Cultural do Louvre. Publicou, no Brasil, A beleza do gesto (Edusp, 1997) e recentemente, na França, La beauté à outrance (Actes Sud, 2004).