Às mulheres que atravessaram minha vida

Às mulheres que atravessaram minha vida
(Imagem: Denis Sarazhin)

Dedico este texto a todas as mulheres
que marcaram amorosamente minha vida.
São muitas e não teria como citá-las todas.
Elas se reconhecerão nesta pequena dedicatória.

Se escrevo estas linhas, é porque disponho de exemplos que me encorajam. Mulheres fortes. Elas pensam e escrevem. Rasgam espaços com as palavras que pronunciam.

Não é de hoje que ideias me assaltam. Demandam de mim dedicação para colocá-las em palavras. Reluto contra isso. As ideias são seres desagradáveis. Não fui devidamente educada para dar conta delas. Exigem muito. A vida de alguém assaltado por ideias não é feita apenas desses seres invasores. Há amizades e amores. Há preguiça e cansaço. Há corpo erótico e sexualidade. Há distração. Há paisagens para além das ideias. É sempre uma escolha dedicar-me a elas no lugar de entregar-me a tantos outros elementos importantes da vida. Se o faço é porque ideias costumam não dar paz. Enquanto não cuido de seus corpos – a escrita e as palavras – elas gritam de maneira muda, mas constante.

Eis-me aqui com mais uma delas que se impôs agora, vinda de longe. Embora nasçam frágeis, as ideias se expandem e se adensam em muitas camadas.

Essa ideia é composta de experiências e elaborações psíquico-teóricas – as ideias que conheço são quase sempre dessa natureza, ou seja, elas ganham corpo pela experiência e pela linguagem, sobretudo a da psicanálise e a da filosofia. Às vezes, consigo escrevê-las quando já estão suficientemente descoladas de meu corpo. Nesses momentos, imprimem-se nas letras de maneira mais organizada e distante.

Hoje duvido um pouco se devo esperar para escrevê-las, como se espera pelo momento do amadurar da fruta, ainda verde. Não raro, a espera ultrapassa o tempo preciso e resulta em morte. Ideias também murcham. Algumas chegam a apodrecer. E, se perecem, há um luto a ser feito por tê-las deixado se apagar. Ideias não deixam de dar trabalho depois de fenecerem. Sua morte significa apenas um descolamento que se dá entre nosso movimento erótico e a materialidade linguística de que é composta. As ideias mortas continuam a importunar, são chatas. Sua importância existe por terem alçado ao patamar de elaborações simbólicas. E, se não ocupam mais o nosso desejo de maneira vibrante no agora, ainda preservam interesse para o plano simbólico no qual uma vez se amarraram. Tendo chegado a esse ponto, continuam a exigir direito de cidadania, o nome que lhes concede lugar. As ideias mortas transcrevem-se em um movimento de resgate das memórias relativas a um cadáver, intensamente amado certo dia.

A ideia de hoje é de espécie imatura. Seu único viço é a verdade. Já vi muitas desse tipo. Gostei de algumas. Claro, as maduras são mais seguras – se impõem sem pedir permissão, escondem a parte vergonhosa que as compõem. Mas não há beleza também na fragilidade? Talvez a redação deste texto traga uma pergunta: uma ideia que se impõe a mim, ainda rudimentar, terá seu espaço? Olhos para lê-la? Ainda não sei – é o que verei com essas linhas.

***

A ideia que busco transpor em corpo amarra-se em uma extensa declaração de amor dirigida a muitas mulheres. É uma ideia que encarna um gesto de gratidão, no sentido dado ao termo por Melanie Klein. Comovo-me diante de certos afetos. Nunca os declarei em alto e bom som. Duvidei que pudessem ter interesse para além do reconhecimento que faço em âmbito privado. Duvidei que pudessem ser algo mais do que meros sentimentos conturbados que existem dentro de mim.

Há mulheres a quem devo minha vida, claro. Minha mãe, que me criou com toda a força de que dispunha, uma energia impregnada de Eros. Ela me mostrou a leveza em meio ao seu infatigável trabalho, sem nunca reclamar. Teve ânimo para amores eróticos, desejar a vida, o movimento. Mostrou-me suavidade e graça. Suas horas nervosas eram sinais de seu limite, o vislumbre de sua vida circunscrita a certas medidas inescapáveis.

Na mesma linhagem, houve o amor de minha tia-avó italiana. Esse amor aparecia em seu sorriso largo, na forma aquecida como recebia em sua casa dezenas de pessoas da cidade onde morava, Borgo San Lorenzo. Depositava-se nos pratos de comida, feitos com os mais delicados afetos. Senti seu amor em cada tempero selecionado. Nas gargalhadas compartilhadas enquanto eu a assistia em frente ao fogão, expondo os segredos de seu amor aos lançá-los nas panelas. Eu os devorava com fervor, quando já estavam na mesa de refeição.

Outra mulher amada foi minha avó, também italiana. Uma mulher pesada, que me ensinou a intensidade da braveza, o destemor de falar verdades sobre o que se pensa. Suas palavras estavam sempre misturadas com a fumaça do cigarro. Seu amor era disforme como era a nuvem acinzentada que subia da brasa acesa ou saia de sua boca. Ela mantinha-se além do belo aparente, reservado e exigido de nós, mulheres que amam. Na cozinha, ela recuperava sua doçura, sem deixar de ser firme. Eu a via cozinhando por horas, segura do que fazia. Admirava seu saber, mas só sei disso agora, no instante exato em que escrevo sobre os afetos de minhas mulheres. Enquanto eu os deglutia com o meu ávido apetite, ela sorria satisfeita, certa de seu amor. Sabia que estava calcando-o em minhas vísceras.

Há ainda o amor de minha irmã, cuja tonalidade era a da admiração por quem eu era. Um amor que escutou cada um de meus mais íntimos segredos, aqueles que nem eu mesma conhecia antes de relatá-los a ela.

São mulheres de uma vida.

***

Mas há também aquelas que pertencem à esfera simbólica, que imprimiram linguagens no âmbito público. Ainda que uma violência invisível sempre tenha tentado restringir o recorte simbólico que elas abriram em mim, o amor que espalharam pelo mundo me atingiu, sem misericórdia.

A primeira mulher, cujo amor penetrou meus poros, foi Olgária Matos. Cai desavisada em um curso por ela ministrado em 2000, na USP. As aulas dedicavam-se a analisar Origem do drama barroco alemão, de Walter Benjamin. Naquela altura, nunca tinha escutado o nome de Benjamin. Ouvi-la falando de príncipes barrocos e heróis trágicos, de luto e melancolia, de alegorias e ruínas, de gregos e alemães mudou por completo os rumos de minha vida. Queria compreender as palavras que saiam de sua boca e decifrar a voz daquele amor por objetos tão belos. Por anos, Olgária Matos apareceu misteriosamente em meus sonhos. A ela devo meu amor mais intenso à filosofia e a Walter Benjamin.

Talvez tenha encontrado ao acaso, agora que reflito sobre essas questões, o fio que enlaçou meu desejo naquelas aulas. Em uma entrevista, ela afirma: “se a filosofia é, antes de tudo, um amor ao conhecimento, podemos concluir que a atual crise da cultura é uma crise da capacidade de amar”. Suponho que quisesse restaurar minha capacidade de amar objetos do conhecimento, pois meu amor por eles era repleto de feridas. Resgatando Theodor Adorno, ela diz ainda que o conhecimento como “acúmulo de saberes especializados, de fácil aplicação” produz “uma cultura imune ao maravilhamento”. Maravilhei-me de pronto.

Tendo ingressado no Departamento de Filosofia da FFLCH-USP, após o estrondoso impacto causado pela figura de Olgária, soube das famosas aulas de Marilena Chaui. Foi excessivo para minhas forças. Nunca assisti aos cursos dela. Seria desonesto alegar falta de tempo, embora ela tenha tido seu papel e tenha sido a razão que dei a mim mesma por não estar lá. Quando cursei filosofia, já trabalhava muitas horas como psicanalista e professora, além de fazer mestrado. O que me impediu, porém – e hoje reconheço -, foi a envergadura de seu trabalho.

O avesso da gratidão são os afetos de inveja e ressentimento, ensina Melanie Klein. Esses dois afetos, pequenos e tenebrosos, não emergem apenas de maneira ruidosa pela raiva, pelo ódio, pelo ataque ostensivo. O simples anular de um espaço, ou o gesto aparentemente sutil de desviar os olhos de uma existência que promete ser amorosa, também sinaliza inveja. Os amores exigem muito trabalho, e intuímos a extensão da demanda no rápido vislumbre de alguns objetos, capazes de despertar de maneira avassaladora o Eros que nos circunda. Muitas vezes, o que se evita é a inquietude perturbadora, própria ao desejo. Pois, qual seria o efeito ao encará-lo?

Embora em O poder político da amizade Marilena Chaui, retomando Discurso da servidão voluntária de La Boétie, afirme que não se deseja a liberdade por ser ela “demasiado fácil”, a mim, uma mulher que aprendeu a ser sobretudo agradável ao Outro, parecia difícil assumir tal liberdade. “A marca essencial da liberdade”, ela diz, “é não ser objeto de desejo”. Com parcos recursos para confrontar a grandeza de alguns amores que me lançariam a uma posição vertiginosa de liberdade, optei, em certas ocasiões, por diminuir a intensidade de meus afetos. Sem assumir a enorme dedicação que eles exigiriam, mascarei a visão ainda tímida daquele vasto horizonte espinosano e merleaupontiano apresentado por ela. Recuei, desencorajada. Sinal da face melancólica de alguns afetos que entram em luto cego por não disporem de uma vida na qual caberá empenho em relação a algo admirável. Como saída, cerram-se as pálpebras.

Muitos textos de Marilena Chaui fizeram parte de meus planos de ensino de filosofia, quando ainda era professora da matéria no Ensino Médio. Sempre agradeci, nesse âmbito privado hoje exposto aqui, o fato de ela existir como figura vigorosa na filosofia brasileira e conceder contornos simbólicos a mulheres do país que desejam se entranhar na linguagem da cultura, da filosofia, da política e do saber. Junto de suas palavras, via seu amplo sorriso e sua boca coberta de batom. Palavras que saiam da boca de uma mulher poderosa. O poder das mulheres traz delicadeza, não é imposição brutal. E essa característica está longe de ser inata, algo que se deva à natureza. Enquanto ela pronunciava suas palavras por aí, eu as engolia, como degluti as comidas preparadas pelas mulheres da minha vida. É enorme ter uma mulher como Marilena Chaiu na Secretaria da Cultura de um município como São Paulo. É potente para outras mulheres vê-la enfrentando adversários que quiseram destruí-la, mesmo que muitas não percebam ou se afastem por medo da extensão de seus atos e feitos prático-teóricos, como fiz um dia e talvez ainda faça.

Eu a lia, assistia de longe seus pronunciamentos, os vídeos de suas falas. Um dia, todavia, não pude escapar da confrontação direta com sua figura. Era 2013. Já tinha me formado há anos. Estava no Congresso Interamericano de Filosofia que aconteceu em Salvador. Mais uma vez, quase me desviei de sua presença. Vi a programação do evento. Nela havia uma palestra que trataria o tema que pesquisava à época. Disse a uma colega que não estaria na conferência de Marilena Chaui porque queria assistir a outra, coincidentemente no mesmo horário. Ela se surpreendeu – todos que lá estavam queriam vê-la. Desconfiei de mim mesma, estranhando, pela primeira vez, minha própria resistência.

Fui à conferência de Marilena ainda convencida de que apenas acompanhava minha colega. Nesse dia, compreendi a razão de meu afastamento – sua fala era espantosa. Naquela época, ela pesquisava a nanotecnologia, os valores de um mundo destituído de corpos e do sensível. Em sua análise profundamente inteligente, viva e sedutora, falava da Fenomenologia da percepção de Merleau-Ponty, mas também de empresas de nanotecnologia e de O demolidor, filme hollywoodiano de ficção científica com Sandra Bullock e Sylvester Stallone. Como dar conta de tudo aquilo? Até hoje não sei, mas a melhor coisa que fiz, na ocasião, foi ter ido àquela conferência.

Com dor, reconheci movimentos pequenos dessa natureza mais uma vez em mim. Outra mulher, cujo nome alcançou uma dimensão simbólica e cujas palavras tocaram em algum lugar o Eros que habita em mim. Não é de hoje.

Quando dei aulas de filosofia no Ensino Médio, lia a Revista Cult, onde agora escrevo para o site. Muitos textos de dossiês serviram às minhas aulas. Lia assiduamente a coluna de Marcia Tiburi. Tentei ler Magnólia, mas não fui adiante. Não sei bem dizer por quê. Depois acompanhei de longe seu trabalho. Sempre admirei sua força, coragem, ousadia, inteligência. Como não duvidar de que aquilo que se tem a dizer é importante a ponto de exigir a abertura de enormes áreas na vida e na esfera pública? Talvez tenha sido uma questão dessa espécie a me perturbar. Minhas dúvidas me lançavam para trás. Formavam fios que se enroscavam em torno de meu corpo, levando-me à inação.

Também no espaço particular que me compõe, sempre admirei o trabalho de Marcia Tiburi. Mas isso é pouco. Um verdadeiro amor exige mergulho, trabalho, crítica, dedicação. Minha admiração limitou-se a defendê-la de algozes que pronunciavam, sem nenhuma espécie de acanhamento, seus ataques. Não vinham apenas da extrema-direita. Ouvi as mais impiedosas ofensas de figuras acadêmicas, homens de esquerda e mulheres que a eles se submetiam, mesmo que cegas dessa condição. Eram agressões aparentemente inofensivas, inocentes e jocosas desqualificações. O resultado de manifestações como essas em âmbito público é, todavia, devastador. Se há destruição ou aniquilação pública de uma figura e de uma obra, aqueles que se identificam com o enunciador poderão – se fracos – destruir também a obra e a imagem da figura atacada, sem nem saberem ao certo do que se trata.

Embora o meu lugar de defesa de Marcia Tiburi fosse claro e pleno de convicção, manteve-se firme apenas sob forma de um escudo dentro do pequeno alcance que eu tinha. Ao mesmo tempo, uma vez mais, coloquei uma parede que barrava meu amor. Nunca li seus livros de filosofia. Uma vergonha que confesso hoje, certa de que estou disposta a mudar de rumo.

Nesses dias, interessada em questões feministas que abordam a saída das mulheres de sua enroscada posição de objeto do desejo, defrontei-me com dois belíssimos textos escritos por ela. Um deles, “Ofélia morta: do discurso à imagem”, publicado na Revista de Estudos Feministas, tratava da construção e do cultivo da imagem da mulher morta na cultura ocidental, como tinha visto por outros prismas nos trabalhos Women in Dark Times, de Jacqueline Rose, em Calibã e a bruxa, de Silvia Federici, nas análises sobre Baudelaire e Mallarmé em A linguagem se refletindo, de Larissa Drigo, e mesmo nas análises de Walter Benjamin sobre Ottillie em As afinidades eletivas de Goethe. O outro texto com o qual deparei, “Toda beleza é difícil”, estava em um livro pioneiro no Brasil, organizado por ela, Magali de Menezes e Edla Egert: Mulheres e a filosofia.

É possível que tenha sido exatamente a leitura recente dos textos de Marcia Tiburi a me levar à elaboração deste titubeante texto. Com tal leitura, visava à saída de minha condição de objeto do desejo para a de uma vertiginosa e imprevisível liberdade. Estou certa de que confrontei tal saída.

Agora que nela me coloquei, vejamos onde me conduzirá.

Alessandra Affortunati Martins é psicanalista e doutora em Psicologia Social e do Trabalho pela USP. Autora de Sublimação e Unheimliche (Pearson, 2017), O sensível e a abstração: três ensaios sobre o Moisés de Freud (E-galáxia, 2020) e organizadora de Freud e o patriarcado (Hedra, 2020).


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