A arte de Gilberto Gil em educação

A arte de Gilberto Gil em educação

 

 

Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de novembro de 2021 é “a arte e a educação como meios para combater o racismo”


A música popular brasileira possui um rico acervo de canções que poderia ajudar sobremaneira nas discussões sobre o racismo estrutural existente no Brasil, e, no repertório de Gilberto Gil, há uma diversidade de canções que serviria de motivo para estudar esse problema social tão premente.

A partir da ideia de círculo de cultura, inspirada em Paulo Freire, proponho uma práxis educacional para estudar o racismo no Brasil, tendo como recurso didático canções do artista Gilberto Gil.

O primeiro encontro teria a audição de Raça Humana para estudar o humano, o eminentemente humano, nas mais diversificadas perspectivas de vida em sociedade. Deixemos o próprio Gil cantar:

A raça humana é a ferida acesa
Uma beleza, uma podridão
O fogo eterno e a morte
A morte e a ressurreição

Mas a palavra raça tem sentidos dúbios, o que poderia levar à construção de um discurso persistente de negação do racismo. Então é preciso revirar o baú intelecto-artístico de Gil e ouvir Ser diferente é normal (composição de Adilson Xavier e Vinícius Castro):

Todo mundo tem seu jeito singular
De ser feliz, de viver e de enxergar
Se os olhos são maiores ou são orientais
E daí? Que diferença faz?

Afinal de contas a raça é humana, mas as pessoas convivem em contextos culturais diversos, possuem diferenças na cor da pele, são oriundas de classes e situação econômica distintas e essas coisas influenciam na forma como as relações acontecem entre os humanos.

Em consonância com as discussões sobre o humano, Gil nos convida para uma revisão histórica, quando canta Babá Alapalá:

O filho perguntou pro pai
“Onde é que ‘tá o meu avô
O meu avô, onde é que ‘tá?”

O pai perguntou pro avô
“Onde é que ‘tá meu bisavô
Meu bisavô, onde é que tá?”

Avô perguntou “ô bisavô
Onde é que ‘tá tataravô
Tataravô, onde é que ‘tá?”

Nos versos há um esforço de memória ligando individual ao social, um resgate de ancestralidade nas relações de sangue e de alma. É possível prosseguir a análise do discurso artístico de Gil com A Novidade (composição de Bi Ribeiro, Gilberto Gil, Herbert Vianna e João Barone):

Oh! Mundo tão desigual
Tudo é tão desigual
Ô Ô Ô Ô Ô Ô Ô!
Oh! De um lado esse carnaval
De outro a fome total

Com A Novidade podemos questionar onde se encontram os esfomeados de pão e de cultura no país e, a partir do encontro entre o poeta e o esfomeado, continuar a jornada pedagógica ouvindo De Bob Dylan a Bob Marley: um samba provocação:

Bob Marley morreu
Porque além de negro era judeu
Michael Jackson ainda resiste
Porque além de branco ficou triste

Com a canção, é possível conversar sobre as dinâmicas sociais que interferem na identidade das pessoas e como isso pode contribuir para a continuidade de práticas racistas. Depois de ouvir “um samba de provocação”, a música A mão da limpeza seria fundamental para ser ouvida:

Mesmo depois de abolida a escravidão
Negra é a mão
De quem faz a limpeza

Gil não esquece do trabalho como dispositivo de criação de práticas mediadoras do racismo nas  relações cotidianas.

Mas o cantor-poeta não se limita ao local e vagueia pelo mundo, como na negra melodia Africaner brother bound (composição de Jean Pierre, Henrique Hermeto e Gilberto Gil):

Africaner brother bound
Quanto tempo ainda mais
Já durou até demais
O que não devia ser jamais

E na mistura de sonoridade e poética, Gil expressa sensibilidade quanto ao feminino negro em criações da qualidade de Sarará Miolo:

sara, sara, sara cura
dessa doença de branco
de querer cabelo liso
já tendo cabelo louro
cabelo duro é preciso
que é para ser você, crioulo

Em um outra ocasião, o artista, que diz subir no palco com a alma com cheiro de talco, solta no ar uma inventiva canção como As Ayabás (composição de Caetano Veloso e Gilberto Gil):

Nenhum outro som no ar
Pra que todo mundo ouça
Eu agora vou cantar
Para todas as moças
Eu agora vou bater
Para todas as moças

Onde as mães-rainhas são alegremente reverenciadas e celebradas.

Pois é, haveria muito mais para compartilhar, mas ficarei por aqui.

É preciso retomar os pontos iniciais da proposta educacional aqui apresentada: primeiro, todos no círculo de cultura estão em situação dinâmica de ensino e de aprendizagem da expressão artística e não se pretende que os ensinantes e os aprendentes se tornem artistas, mas que exerçam o direito cidadão de acesso ao acervo cultural da sociedade onde vivem; segundo, o discurso artístico, como qualquer gênero discursivo, pode servir a propósitos variados; daí a necessidade de um posicionamento político claro sobre para que esse discurso será mediado: combate a todas as formas de racismo.

A arte de Gilberto Gil em educação pode ser trabalhada em ambientes educacionais sob múltiplas perspectivas: da língua portuguesa à história, da geografia às religiões, da antropologia à política, da economia à língua inglesa ou francesa e, desta forma, um rico repertório de discurso artístico aguarda os educadores e educadoras deste país para ser usado como elemento de transformação social imbuída de promover o bem comum.

Cleonilton Souza é doutorando em Educação pela Universidade
Federal da Bahia, mora em Salvador, Bahia, e adora caminhar na
beira da praia ouvindo música.

 

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