Documentário reproduz experiência de Glauber Rocha na televisão
Glauber Rocha em Salvador, em 1979 (Foto: Divulgação)
Entre fevereiro e outubro de 1979, Glauber Rocha dirigiu e apresentou um quadro no programa Abertura, da extinta TV Tupi. Todos os domingos, a partir das 22h30, ele aparecia para discutir política, economia e cultura brasileira em monólogos ou entrevistas.
Com microfone na mão e camisa aberta, falava com artistas, políticos, intelectuais e anônimos sobre a anistia, o imperialismo americano, a censura, o futuro do Brasil, as ditaduras e o cinema. Muitas conversas aconteciam na rua, às vezes em festas, estreias ou na casa dos entrevistados. Nada de estúdio, pauta ou câmera fixa.
É a partir dessa experiência que se estrutura o documentário Antena da raça, dirigido por Paloma Rocha e Luís Abramo. Passados quarenta anos do processo de abertura democrática, a dupla quis voltar aos temas e ao método de Glauber na televisão para entender os diálogos entre o Brasil de agora e o de então.
Para isso, foram às ruas entre 2016 e 2018 para saber como brasileiros percebiam o momento político do país, o autoritarismo, a violência de Estado e o racismo – mas também coisas mais pessoais, como o que tinham sonhado naquela noite.
O resultado é uma colagem de personagens e problemas que são mais próximos do que distantes entre si. Infiltrados entre as cenas das entrevistas conduzidas por Glauber em 1979 e por Paloma e Luís nesses últimos anos, os personagens do cineasta parecem encontrar seus correspondentes em 2020. Os entrevistados também.
“O filme mistura o desejo dele com o meu, com o desejo das pessoas nas ruas e dos personagens dele, que estão sempre lutando. Junta o grito dele com o nosso”, diz Paloma, que é diretora, documentarista, produtora e também filha de Glauber.
A incursão pelo Brasil – da Cidade de Deus, no Rio, aos territórios Guajajara no interior do Maranhão – deu origem a uma série de 13 episódios, que estreou em agosto de 2019 no Canal CineBrasil. O documentário homônimo, selecionado para a edição de 2020 da Mostra Cannes Classics, é uma continuidade dessa experiência.
“O poeta Tetê Catalão falava que o Brasil é um país sem gravata. E eu digo sempre que esse é um filme sem smoking”, afirma. Isso porque o quadro de Glauber em Abertura não era “bem comportado”, ela diz, e nem o seu cinema, que saiu dos estúdios e foi para a rua “filmar as pessoas sem maquiagem, sem truque”.
Foi essa a linguagem que o cineasta reproduziu na televisão – para ele, o “cinema popular por excelência”. “Ele vai para a rua de peito aberto, despenteado, de barba por fazer para falar com as pessoas, com políticos, com todo mundo que quiser, e sempre no mesmo tom, sempre de igual para igual.”
Paloma diz que não quis fazer um filme em tributo ao pai, nem sobre ele, mas sim sobre a memória que ela carrega da obra glauberiana – e os sentimentos, emoções e ideias que se desprendem daí. É uma “declaração de amor”, afirma. Amor ao cinema, à sua equipe, ao Brasil, ao sofrimento e à alegria. Tudo isso passando pela figura e obra do pai.
“Ninguém mais fala que ama, tudo virou um compromisso, tudo passa por uma série de intermediações. E Glauber retirou essas intermediações, tanto com Abertura quanto com o Cinema Novo. Ele falava que os filmes dele não tinham psicologismos burgueses, e não têm mesmo, não têm o drama da novela. Ele traz outra dramaturgia, outra psicologia, até meio selvagem e muito antropofágica”, afirma.
E talvez sejam poucos os que conhecem essa obra como ela. Presidente da Associação dos Amigos do Tempo Glauber, Paloma dedicou 13 anos à restauração digital de cinco longas, alguns curtas e todo o material documental do cineasta.
“Ele tem temas básicos, que são a luta de classes e a colonização. Os filmes dele falam disso e o nosso filme também: o que existe é o mundo rico e o mundo pobre. Ele via isso claramente”, diz. “Tenho muito esses personagens na minha cabeça e volta e meia eles surgem e evocam cenas para mim.”
Pátio (1959), Barravento (1962), Deus e o diabo na terra do sol (1964), Terra em transe (1967), O dragão da maldade contra o santo guerreiro (1969) e Câncer (1972) são alguns dos filmes que aparecem em Antena da raça. Todos eles podem ser encontrados no Youtube, um feito da própria Paloma, a primeira a “piratear” a obra do pai.
“Se eu morrer hoje, sei que vai ter alguém no planeta assistindo Deus e o diabo na terra do sol no Japão, na China.” A iniciativa vem de um trabalho de preservação que se vê ainda mais necessário diante dos problemas enfrentados pelo audiovisual brasileiro, especialmente pela Cinemateca, onde estão depositados os originais de Glauber e toda a memória do cinema do país.
No dia 7 de agosto, o governo federal assumiu o controle da Cinemateca e ainda não definiu um novo gestor. Os 52 funcionários que desde março de 2018 eram mantidos pela Fundação Roquette Pinto foram demitidos. O orçamento de R$ 14 milhões previsto para a instituição em 2020 não foi pago pelo governo, gerando um grave crise financeira. Enquanto isso, o acervo permanece exposto a danos irreversíveis.
“O Brasil está passando por um momento seríssimo de preservação do seu universo audiovisual, um massacre cultural. E aí a gente tenta se salvar, salvar o desejo, a angústia, salvar os filmes em primeiro lugar, essa memória e essas ideias. Porque quando eles querem acabar com as coisas, atacam as ideias”, afirma.
Para a diretora, Glauber continuaria falando, hoje, sobre os mesmos temas de que falava há 40 anos, afinal, eles permanecem centrais. Fome, luta de classes, falta de educação, abusos políticos, a crueldade das classes dominantes. “Estaria dando um grito de liberdade do jeito dele.”
Em um trecho do documentário, depois de entrevistar o filósofo Luiz Carlos Maciel, Glauber olha pra câmera e dispara: “Quem quiser, nos procure, porque estamos aí querendo transar um Brasil livre para o ano 2000″. O filme será exibido no encerramento do Festival Olhar de Cinema, que acontece entre 7 e 15 de outubro, online.