Anna Muylaert: “A melhor mãe do mundo me levou para um lugar que acreditava ser fraqueza, mas encontrei uma força extrema”
A Melhor Mãe do Mundo, disponível na Netflix, já ganhou mais de vinte prêmios, entre nacionais e internacionais, e percorreu festivais no México, Estados Unidos, Israel e França, além de outros países. Quem dirige é a cineasta paulistana Anna Muylaert que, em um ano, esteve às voltas com mais dois filmes: O Clube das Mulheres de Negócios teve uma recepção fria e pode ser visto no Telecine; e Geni e o Zepelim, em fase de montagem, que causou polêmica quando uma atriz cis foi escolhida (e depois dispensada) para interpretar a protagonista travesti. Anna recebeu o repórter Miguel Barbieri para um bate-papo em sua casa, no bairro da Lapa, em São Paulo, para falar de todos esses temas e também de política de cotas em editais, Lula e o relacionamento abusivo pelo qual passou.
De onde partiu a ideia de A Melhor Mãe do Mundo?
Soube das catadoras de materiais recicláveis que levam as crianças na carroça e fiquei com essa imagem na cabeça. E eu tive um relacionamento abusivo e queria também falar disso. Era uma necessidade minha tratar de violência doméstica e, para conhecer o mundo das catadoras, fui ao (bairro do) Glicério e encontrei mulheres muito fortes. A pesquisa começou em 2019 e a primeira que eu conheci foi a Fabiana Silva. Fui até a Favela do Moinho, onde ela morava e alimentava os três netos com arroz, ovo e chuchu sem sal. Ela economiza até no sal. Foi a pessoa mais pobre que eu conheci, mas tinha uma força tão grande que eu saí de lá apaixonada. A Melhor Mãe do Mundo me levou para um lugar que eu achava que era de fraqueza, mas encontrei extrema força. A sociedade invisibiliza os carroceiros, mas eu aprendi demais, tanto que ampliou minha cabeça e meu coração.
Como foi o relacionamento abusivo que você passou?
Eu achava que ele era apenas um cara era nervoso e controlador e precisava fazer terapia. Em casa, eu tinha de estar disponível para ele. Eu ia no banheiro da minha própria casa e ele ia atrás, achando que eu ia trair ele. Me sentia como se tivesse uma coleira amarrada em mim. Quando eu disse que não queria mais o relacionamento, ele ficou violento. Mas eu não percebia que estava num relacionamento abusivo e sofrendo violência doméstica. O (movimento) MeToo, em 2017, abriu uma “bíblia” na minha cabeça. Nós, mulheres, começamos a olhar para trás e entender o que se encarava como normalizado. Eu acho que relações héteros, do homem para a mulher, são, basicamente abusivas, mas a gente entende como normal porque aprendemos que é desse jeito.
Lula te recebeu bem na apresentação de A Melhor Mãe do Mundo no Palácio da Alvorada?
Eu já tinha ido no Alvorada para mostrar Que Horas Ela Volta? para a Dilma, que convidou só cineastas mulheres, em 2010, quando a gente era desvalorizada. Foi muito emocionante. Desta vez foi com o Lula, que é uma das melhores pessoas do mundo. Sou fã dele até debaixo d´água. Ele parece um tio que a gente fica com saudade.
Está com medo de a extrema-direita voltar ao poder na eleição de 2026?
Não tenho medo, mas eu sou ingênua, a ponto de achar que não iria ter golpe.
Você foi uma das cineastas mulheres pioneiras nos anos 90 e, agora, como vê esse número crescer a passos largos?
A questão de gênero está melhorando, especialmente depois do MeToo, porque o principal problema do machismo não é só a cultura que vem de fora, mas a cultura que está dentro. Digo que está melhor, mas a gente vem de milênios, de séculos, de quando o homem dizia “seu lugar é na cozinha”. Estamos num momento meio dúbio, meio contraditório. No mesmo ano, o Brasil ganhou o Oscar (Ainda Estou Aqui), os prêmios de melhor direção (para Kleber Mendonça Filho, de O Agente Secreto) e melhor ator (Wagner Moura) no Festival de Cannes e o Prêmio do Júri no Festival de Berlim (O Último Azul), mas somos, todos, diretores que estamos aí há décadas. A situação para quem está começando é muito diferente da minha porque comecei na retomada do cinema brasileiro. Hoje, existem mais editais, mas eles têm menos dinheiro do que deveria.
O que você acha da política de cotas nos editais?
Eu sou favorável à política de editais para realizadores negros, indígenas e trans, mas isso acaba facilitando para alguns profissionais que ainda não estão prontos para fazer longas-metragens. Eu tinha 37 anos quando realizei Durval Discos, meu primeiro longa, e já tinha trabalhado muito e tinha muita experiência. Hoje, vejo pessoas que estão tendo políticas protetórias entrando no jogo muito cedo e fazendo filmes que não têm expressão na sociedade. Há cerca de duzentos filmes parados na Ancine porque não têm dinheiro para serem lançados. Não está fácil para quem está começando.
Você já foi preterida em algum edital por ser uma mulher cis branca?
Eu não, mas conheço uma ótima cineasta que não ganhou um edital por ser branca. Na fase de projeto, ela tirou o primeiro lugar. Mas aí entraram todos os filtros e ela acabou não ganhando.
Como você reagiu às críticas negativas de O Clube das Mulheres de Negócios?
O filme se precarizou na filmagem e eu ia pra o set sabendo que estava fazendo um filme abaixo do meu padrão. Perdi cinco quilos durante o processo. Ele teve uma recepção ruim de maneira geral, mas eu já esperava por isso.
Como você encarou o ativismo trans quando escolheu uma atriz cis (Thainá Duarte) para interpretar Geni no filme Geni e o Zepelim?
Para quem tem a minha idade (61 anos) e comprou o LP do Chico Buarque, Geni era uma prostituta. Eu a via como sinônimo de injustiça. A imagem da Geni como travesti colou muito no imaginário das pessoas trans, mas nem eu nem a produtora, que comprou os direitos da música, sabíamos. Depois que já estava tudo acertado, inclusive de ter uma atriz trans no papel da Geni, falei para a produtora que eu não seria a pessoa certa para dirigir o filme. Teria de ser uma diretora trans. Só que o “dinheiro” não confia em alguém que nunca tenha feito um longa-metragem. Aí, decidimos que seria uma atriz cis para que eu pudesse dirigir e o teste da Thainá ficou incrível. Quando saiu uma nota sobre o filme no jornal, veio a manifestação popular. Para as mulheres trans, Geni é quase um santo padroeiro. No mundo da ficção, não dá para dizer que Geni é trans, mas, no mundo político contemporâneo de hoje, dá.
Como ficou sua relação com a saída da Thainá e a entrada da atriz trans Ayla Gabriela?
O pior e mais difícil momento foi, com certeza, tirar a Thainá, que já estava fazendo laboratório. Eu tentei colocá-la em outro papel, mas ela não quis. Ficou muito chateada e pediu que eu não tentasse ficar amiga dela porque se sentiu rejeitada. A chegada da Ayla Gabriela, que já havia feito teste, foi maravilhosa e nos demos super bem.
Transformar a música do Chico em roteiro de filme foi o maior desafio na carreira?
Eu tinha que ser fiel ao Chico, à letra, à Geni, fora que é o meu primeiro filme em que a ideia não veio de mim. Eu tive que ir para a floresta, para a Mata Atlântica, escrever o roteiro para “sentir” a Geni e fiquei em Camburi sozinha. Mas acho que meu maior desafio foi em Que Horas Ela Volta? porque eu demorei vinte anos para terminar.
Que Horas Ela Volta? foi o filme escolhido para representar o Brasil no Oscar em 2016, mas acabou não entrando entre os finalistas. Foi frustrante?
Ele chegou perto e, inclusive, estava na lista de apostas da Variety. Mas eu aprendi uma coisa: sem uma grande distribuidora colocando dinheiro na campanha, não rola. Fora que, ouvi dizer, era difícil escolherem um filme cuja protagonista é uma mulher de meia-idade. Eles querem jovens. Mas não me frustrei. Eu sei a hora em que as coisas têm que acontecer. O filme teve uma resposta social e identitária tão grande que o Oscar não seria mais importante do que isso pra mim.
A Melhor Mãe do Mundo ficou, neste ano, entre os pré-finalistas como representante do Brasil no Oscar 2026, mas perdeu para O Agente Secreto. Qual foi sua reação?
Eu fiquei horrorizada com a manifestação em torno de Manas, da Marianna Brennand, que queria a vaga. Pensa comigo. Só dois cineastas brasileiros ganharam o prêmio de melhor direção em Cannes: Glauber Rocha, em 1969, e, neste ano, Kleber Mendonça Filho. A Melhor Mãe do Mundo é um filme emocionante, mas o escolhido só podia ser O Agente Secreto.
Você já viu O Agente Secreto?
É incrível. Ele não te dá respostas, tudo te leva a refletir. O Wagner Moura está ótimo, mas ele não é o principal. O casting, sim, merece o Oscar e, pra mim, chama mais atenção do que o protagonista.
Miguel Barbieri é jornalista e crítico de cinema





