Angústia do missivista contumaz

Angústia do missivista contumaz

 

Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de dezembro de 2021 é “angústia”


A escrita aliviou-me algumas angústias, criando outras. Intensificou-se no período do tratamento da filha e virou atividade constante, quase diuturna, quase obsessiva. E aumentei, e muito, as cartas para editores de jornais e revistas. Na pandemia, a mente angustiava-se – e segue angustiando-se – na busca de respostas a publicações, a fatos, a opiniões, ao descaso com que a vida da população foi tratada.

A carta plasmada e enviada aliviava, momentaneamente a angústia, mas a não publicada apenas gerava mais decepção. Se o espaço aqui é aberto, uso deste lugar de fala para, paradoxalmente, falar sobre a escrita, sobre essa escrita que não foi publicada; talvez nem lida tenha sido.

O racismo é angustiante. A ameaça à laicidade do Estado é angustiante. A má interpretação da autonomia médica é angustiante. Três estocadas da angústia, três daquelas missivas rejeitadas.

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A pantomima da sabatina de André Mendonça no senado para a vaga no STF foi angustiante. O agora novo ministro é submisso ao que de mais perverso foi criado na política brasileira, ainda que se possa especular que ele não responda nem ao despresidente nem ao povo brasileiro. Ontem fez o papel de vassalo para conquistar a vaga perpétua no STF, mas amanhã restará apenas um ministro medíocre que mal sabe ler a Constituição. Poderá ter tempo de aprender alguma coisa em outro governo, mas fato é que a Suprema Corte degrada-se mais uma vez.

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No passado houve a justificativa – ou desculpa – de que filmes fotográficos não granulavam corretamente peles escuras e o resultado foi o embranquecimento de muita gente, Machado de Assis um dos exemplos mais notórios. As considerações dos profissionais da área do direito mostram que a imagem preconceituosa vai além das limitações tecnológicas, constituindo um racismo fotográfico. Além da escrita como auto-psicanálise, a formação científica exige que atue contra mais essa angustiante mazela, ainda que veja veículos sérios dizerem-se antirracistas, mas, contraditoriamente, serem contra as cotas raciais.

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A angústia mais intensa foi a de assistir às mais de 600 mil vidas levadas pela pandemia e pelo pandemônio que vivemos. Um desses capítulos passou pelo negacionismo de muitos médicos, defendidos por uma criminosa posição do Conselho Federal de Medicina. Os conselhos profissionais existem e atuam para proteger a sociedade das pessoas que exercem sua prática profissional, na forma de uma concessão feita a elas. Não é órgão de classe e, sim, um órgão público. Quanto à autonomia do médico, ela segue os mesmos ditames da resolução 1.499/88, presentes no código de ética médica, restrita à comprovação científica da eficácia e de baixo risco do medicamento a ser usado.

 

Adilson Roberto Gonçalves é pesquisador, membro de instituições
culturais e escreve diariamente cartas a jornais e revistas. Mesmo
com centenas publicadas, são angustiantes as que foram
desprezadas.

 

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