Abre as asas sobre nós!

Abre as asas sobre nós!
(Foto: Reprodução Banksy/ Arte Revista Cult)

 

Lugar de fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de outubro de 2020 é “liberdade”.


Início da década de setenta do século/milênio passado.

Primeiro ano colegial (aos/às amigas/os adolescentes e jovens: assim se chamava o curso que hoje se denomina “segundo grau”). Pois então: primeiro ano colegial de uma escola afundada numa várzea escura da periferia da Grande São Paulo. Última aula. Já é tarde da noite, e, se estuda-se à noite, é porque tem-se de levantar cedo: dupla-jornada. Cansaço e sono. Mas a aula é boa: desperta.

O professor – é uma professora – de Estudos Sociais diz à classe que deverá fazer, individualmente, um trabalho sobre Liberdade. Servirá como prova do mês, valendo de zero a dez. São quatro os requisitos do trabalho. Tema: liberdade; tamanho: duas a quatro páginas de caderno-universitário; redação: nas próprias palavras do aluno (não se pode repetir as suas aulas, nem copiar enciclopédia); prazo: último dia de aula do mês. Quanto ao mais, o aluno é livre para escrever e dizer o que pensa. Sobre liberdade, óbvio.

Uma aluna, que tem máquina de escrever, pergunta quantas páginas deve datilografar. A professora diz que o trabalho deve ser escrito à mão, conforme já disse: “caderno-universitário”.

Portanto, há um quinto requisito do trabalho: escrito à mão.

Pesquisar em jornal pode e é recomendável.

Mas como misturar e fundir editorial, artigo e discurso do presidente da República com as aulas de Estudos Sociais, e produzir uma redação original, de três páginas de caderno?

Não é fácil encontrar palavras que se encaixem e conectem à palavra “liberdade” até encher três páginas de caderno-universitário.

Quase meio século depois: fim da segunda década do terceiro milênio.

Muitas coisas acontecem com todo mundo nessas viradas. Muitas outras aconteceram particularmente com cada um. As primeiras são objeto da História; as segundas, que fiquem nas respectivas memórias. Diga-se apenas que todos experimentamos muitas espécies e formas e graus e naturezas de liberdade, e sentimos falta de outras tantas – que sempre se tem alguma liberdade, e nunca se tem a liberdade plena.

Alguém procura no teclado do notebook três mil caracteres que formem palavras e pontuações e sinais diversos, que se encaixem e conectem em torno da palavra “liberdade”.

Liberdade – que palavra ampla e difícil de ser definida/explicada! Nenhum sinônimo a abarca.  Que coisa etérea, fluida relativa é a liberdade! Estende-se a todos que, em qualquer circunstância, queiram conquistá-la e desfrutá-la; mas não se deixa possuir por ninguém. A qualquer sopro evapora-se, e o “indivíduo” terá que a reconquistar.

Interessante – estou pensando nisto agora, talvez eu esteja enganado –, a liberdade, abstrata ou conceitualmente falando, não tem limite, porque o seu limite é, exatamente, a sua ausência. Porém, na prática, ao ser “exercida”, ela necessariamente tem limites. E não somente porque aí “começa a liberdade do outro”, mas porque o sujeito da liberdade/ser-humano, tem limites em si e/ou se impõe limites:

A liberdade de pensamento talvez seja a mais ampla, quase ilimitada, mas encontra limites de consciência, ou moral. A ela seguem outras “espécies” de liberdade, cada vez mais restritas:

Liberdade de crença/descrença

Liberdade de opinião/não opinião

Liberdade de expressão/calar

Liberdade de associação/isolamento

Liberdade partidária/apartidária

Liberdade de locomoção/ficar

E sempre se pode ultrapassar a fronteira estabelecida para o exercício dela. Mas aí se paga um alto preço pela pretendida liberdade…

Tirei 8,5 no trabalho sobre a Liberdade.

 

Francisco Dias Teixeira, 66, é escritor.
Procurador da República aposentado,
bacharel em Direito (PUC/SP) e
Filosofia (USP). Nasceu em Jequeri-MG
e vive em São Paulo, capital, desde os 16 anos.

 

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