Erika Hilton, a vereadora insurgente

Erika Hilton, a vereadora insurgente
A vereadora e ativista Erika Hilton (Foto: Marcus Steinmeyer / Beleza LGBeauTé)

 

Mulheres negras, além das que se autodeclaram pretas e pardas ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), são as que, a partir de memórias coletivas e repertórios culturais comuns, colocam-se como sujeito político solidário e insurgente ante discriminações de raça, gênero, classe, heterocisnormatividade. Erika Hilton é uma mulher negra, assim como eu sou uma mulher negra. Em nossas diferenças nos descobrimos intencionalmente como essa sujeita política chamada mulher negra. Ela trans, eu cis.

Importante ressaltar que no Brasil a organização política coletiva de mulheres negras não se dá apenas contra o machismo e o sexismo. Historicamente, construímos alianças para combater todas as formas de opressão. A luta contra o racismo e a luta contra a transfobia são, portanto, fundamentos do feminismo negro. Um feminismo que reconhece as diferenças e busca acabar com as desigualdades entre mulheres e homens, mas também entre as mulheres. Um feminismo que imagina outro pacto civilizatório entre mulheres e homens, cis ou trans; pessoas não binárias; e também seres da natureza que possam viver em liberdade. “Contra o racismo, o machismo e pelo bem viver”, sintetizava o lema da Marcha das Mulheres Negras de 2015.

Não nos contamos só por nossas cicatrizes. “No jeito como me visto, cuido das minhas coisas e organizo minha vida”, narro minha trajetória e a de minhas ancestrais, assim como Erika. “Conheci as autoras para saber da pluralidade, das muitas formas de ser feminista, para absorver referências. Isso me organizou e deu instrumentos para as lutas políticas”, assim como Erika. E, se as cicatrizes não nos definem, tampouco podemos ignorá-las. Assim como precisamos repetir que mulheres negras trans estão mais expostas à opressão e à violência que mulheres cis. Mesmo quando são eleitas.

Erika Hilton sofreu ameaças em seu gabinete de vereadora e foi solidária a Caroline Iara e a Samara Sosthenes, quando sofreram agressões a bala em suas casas. Ambas são covereadoras no município de São Paulo, Caroline pela Bancada Feminista e Samara pelo Quilombo Periférico. Antes de ser a vereadora eleita com mais votos em 2020, Erika Hilton foi codeputada na Assembleia Legislativa de São Paulo pela Bancada Ativista. Nesta entrevista, Erika comenta a experiência.

Quando as que se veem massacradas ocupam espaços de poder institucional, levam cada uma de nós com elas. Nos convocam à
insurgência e nos nutrem de esperança. Mesmo nos tempos difíceis que virão, ainda mais difíceis, estaremos mais fortes e com mais consciência política. Persistiremos.  (Bianca Santana)

Em 23 de fevereiro, você conseguiu abrir uma Comissão Parlamentar de Inquérito na Câmara Municipal de São Paulo para apurar casos de violência contra transexuais. O pedido foi motivado pela morte de Lorena Muniz numa clínica onde se submeteria a um implante de próteses mamárias, após ter sido deixada inconsciente  e inalando fumaça durante um incêndio. Esse é o início de um mandato alerta para a violência contra a população LGBTQIA+?

A poucos dias do mês das mulheres, já deparamos com a tragédia, a gravidade e a dor que marcam a realidade de mulheres trans e travestis no Brasil. Nós sabemos que bombadeiras colocam silicone industrial no fundo das casas de suas cafetinas, e digo isso por ter perdido amigas assim. Por pouco eu mesma não fui uma vítima. Estamos no momento de organizar nossa dor e construir uma frente ampla que desperte na sociedade a compreensão de que isso é reflexo da falta de políticas públicas voltadas para a saúde integral das pessoas. Enquanto o Estado e a medicina acharem que cirurgias de redesignação, colocação de silicone e retirada dos seios são meramente estéticas, continuaremos a ver trans e travestis submetidos a médicos e procedimentos suspeitos.

Em muitas ocasiões você menciona a escritora e filósofa Simone de Beauvoir, autora da famosa frase “não se nasce mulher, torna-se mulher”. Como foi e tem sido para você o processo de tornar-se? 

É uma trajetória marcada por muitas dores, dificuldades e desafios. Eu soube que era uma mulher desde pequena. Ainda não sabia que era uma mulher travesti, mas já me via naquele universo. Eu me via como minha mãe, tias, avó, sentia fazer parte daquele mundo. O processo foi de perceber-me mulher e encontrar formas de externalizar e viver isso. Buscava referências em casa e também na televisão, nas mulheres das novelas mexicanas.

Quando sentiu os primeiros sinais de desaprovação?

Logo descobri que minha mulheridade não seria muito bem-vinda, uma mulheridade travesti. Aos 14 anos perdi  provisoriamente o suporte da família sanguínea e me descobri na sarjeta e na prostituição. Inicialmente, com minha família havia sido uma trajetória de afeto, mas também tive de lutar muito pelo reconhecimento da minha condição de mulher, do meu gênero. Isso me fez a mulher mais votada do país, para a maior Câmara Municipal da América Latina.

Quais são as mulheres que inspiram você?

Minha família é muito matriarcal, feita de mulheres duras, fortes. Hoje em dia eu vejo muito delas em mim, no jeito como me visto, como cuido das minhas coisas e organizo minha vida. A família tradicional brasileira é essa de mulheres fortes, da mãe solteira com suas irmãs e avós cuidando dos filhos e vencendo o mundo. Não é a família conservadora, retrógrada: papai, mamãe e filhos. Isso é uma idealização. As mulheres resistem contra a violência dos homens e contra a fome. É óbvio que essa família também tem seus problemas, mas é a mais próxima da realidade brasileira.

E sua família travesti?

Quando fui para a prostituição, que era a única forma de me manter viva, conheci muitas travestis que também me inspiraram, pela forma como são mulheres e pelo que fazem com seus corpos. Construí outros laços de família, porque família é um afeto, uma forma de estar junto.

Como os feminismos atravessaram sua trajetória e que importância tiveram? 

Os feminismos e as teorias feministas chegaram muito depois. Eu me construí mulher no carro do cliente. Eu me vi mulher antes, em casa, mas me construí ao lado de minhas irmãs travestis na rua. Conheci as autoras para saber da pluralidade, das muitas formas de ser feminista, para absorver referências. Isso me organizou e deu instrumentos para as lutas políticas.

Depois de voltar para a casa de sua família, você cursou graduação em Pedagogia e em Gerontologia na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Como se deu sua tomada de consciência política?

Eu tomei consciência política quando fui expulsa de casa. Ao perder o ambiente familiar, comecei a entender que há um projeto institucionalizado para o meu corpo negro, periférico, de criança viada – tudo isso já tem um lugar de exclusão destinado pela sociedade. Não poderia tratar aquelas violências como naturais. Encontrei nas ruas pessoas anônimas que me fortaleceram e nomes conhecidos, como [a escritora] Carolina Maria de Jesus, que era catadora de papel e escrevia sobre as suas dores; [a filósofa estadunidense] Angela Davis; [a antropóloga] Lélia Gonzalez, e Daniela Andrade, uma ativista que usava o Facebook para falar do direito de mulheres trans e travestidas, e da transfobia institucional.

Como foi o período na universidade?

Na UFSCar, conheci o movimento estudantil e passei à militância. Fundei um cursinho pré-vestibular para travestis e transexuais no campus. Entendi que precisava ter atividade política para pautar aquelas dificuldades, ser uma voz que facilitasse acessos e desse visibilidade ao que estava debaixo do tapete. Antes de ser vereadora, sou uma ativista que milita pelo direito de existir. Entendi que é urgente e necessário tomar o poder, sermos as protagonistas da sociedade que queremos construir, que seja boa para todes. Ninguém vai precisar dar um passo para trás porque Erika Hilton deu um passo para a frente. Vou procurar ser uma referência para que outras Erikas Hiltons cheguem ao espaço da política e outras maneiras de existir sejam vistas como possíveis.

Estamos no mês da mulher e a questão da maternidade imposta ou desejada é sempre central. Como é para você? Pensa em ser mãe? 

Maternidade é um peso e uma responsabilidade imensa! No momento não penso em filhos. Eu falo para meu marido, o [ator e homem trans] Gabriel [Lodi], que vamos hibernar sobre esse assunto por uns dez anos e, se ainda estivermos juntos, falaremos nisso. Ainda não penso nas expectativas de ser mãe, nem nas condições necessárias de tempo e estrutura.

Você vê sua eleição como revolucionária?

Sim, representa uma mudança de pensamento. O bolsonarismo, o dorismo e o covismo criaram um choque de realidade. Fizeram muitos eleitores entenderem que, se nós não mirássemos o alvo certo, para poder fazer as transformações necessárias, morreríamos à míngua. Isso é fruto de um trabalho coletivo de muitos anos. Minha eleição significa um acordar dos oprimidos, esquecidos, abjetos – dos grupos sociais que se viam  massacrados.

Como pensar na inclusão em uma cidade como São Paulo, em que os governantes tentam instalar pedregulhos sob viadutos para impedir o abrigo de moradores de rua?

É um governo genocida, excludente, dos interesses das elites. É muito difícil fazer política para os vulneráveis quando quem tem o poder olha para nós como vidas que não importam. Mas no meu primeiro mês de mandato já desenvolvi um método de diálogo com os secretários municipais, porque o prefeito nunca me recebeu e acho que não fará isso tão cedo, por causa de minha postura combativa e do partido em que estou [Partido Socialismo e Liberdade, Psol]. É preciso ir abrindo brechas para tentar minimizar os danos da política vigente. Uma política totalmente inclusiva ainda está longe. Eu tenho atuado para tentar consolidar a passos lentos, e a longuíssimo prazo, uma política de humanidade que renove o cenário. O máximo às vezes pode parecer o mínimo, mas o mínimo, para quem não tem nada, já é muita coisa.

Erika Hilton (Foto Marcus Steinmeyer / Beleza LGBeauTé)
Erika Hilton: Antes de ser vereadora, sou uma ativista que milita pelo direito de existir (Foto: Marcus Steinmeyer / Beleza LGBeauTé)

Qual é a prática possível contra um sistema estruturado para criar lugares de opressão?

Criar uma política interseccional, conectada com as bases, que se paute pelo que diz a sociedade, e não pelos interesses dos próprios políticos. Os candidatos apresentam programas que são aprovados nas urnas, mas chegam ao poder e viram as costas para a política de verdade, pautada pelas necessidades das pessoas. É possível reverter essa situação, mas vai demorar muitos anos, não vai ser comigo. É uma discussão que está embrenhada na cultura, na economia, em tudo o que molda essa estrutura para ser como ela é.

Um dos líderes do Psol, o ex-candidato a presidente e prefeito de São Paulo, Guilherme Boulos, sempre afirma a importância da descentralização nas relações sociais. Como fazer isso numa cidade com tamanha densidade populacional?

Temos de encontrar esse caminho de uma forma coletiva e fazer com que a periferia chegue ao centro. A segregação econômica precisa parar de ser entendida como normal. Eu acho que isso se dá ouvindo e dando vozes da periferia, fazendo com que as coisas que acontecem só no centro passem a acontecer também nas periferias. Eu sou uma mulher que cresceu na periferia [Francisco Morato, na região metropolitana de São Paulo] e trago elementos periféricos no meu corpo. Não queremos pedir licença ao centro e sair da periferia para ser o que queremos. Mas a periferia precisa deixar de ser lugar de massacre e estigma, onde a polícia chega para fazer barbaridades. 

Nesse processo você acha que a política vai saindo de um campo polarizado?

Eu acho que não. Cada vez que nós – negros, LGBTQIA+s, pobres, classe trabalhadora – ousamos ocupar outros lugares, a política se torna mais hostil e violenta para tentar fazer com que a gente recue. Ao mesmo tempo, chegamos a lugares em que podemos dar novo tom ao debate. Estamos dizendo que a política também é lugar de enfrentamento, resistência, abertura de caminhos, denúncias. Nesse momento da história, a política é isso.

Em direção a uma política mais horizontal, há as experiências dos mandatos coletivos. Você costuma dizer que sua experiência na Bancada Ativista do Psol na Assembleia Legislativa de São Paulo não foi boa. Que problemas identifica nessa forma de candidatura?

Os mandatos coletivos podem ser uma forma de democratizar e pensar a atuação legislativa de outra perspectiva, com a contribuição de pessoas que talvez não conseguissem se eleger via candidatura única. Isso é bom para a democracia e os espaços políticos. No entanto precisa ser feito com muito cuidado e responsabilidade. Na minha experiência de mandato coletivo, havia pessoas vindas de lugares diferentes, com visões distintas de política, vida e mundo, tentando dizer que estavam caminhando para um mesmo lugar quando na verdade cada um estava puxando a corda para um lado. Eu me senti espremida, com minhas urgências, num lugar que não priorizava as pautas importantes para mim. O modelo em que eu me inseri não teve a preocupação de saber quais  nomes e trajetórias estavam se unindo.

No plano federal, o recém-eleito presidente da Câmara é Arthur Lira (Progressistas, PP-AL), aliado de Bolsonaro. Como combater o presidente diante disso?

Os próximos tempos vão ser duros, difíceis. Precisamos fortalecer os movimentos sociais, fazer com que cada vez mais pessoas tenham consciência política. Temos um cenário odioso, um país polarizado, um presidente perigosíssimo para a democracia e os direitos humanos, e isso tende a se agravar.

Uma grande discussão atual é como a esquerda vai se comportar em 2022. De que forma você vê essa articulação?

Não sei como ela vai se comportar, mas o que precisa ser feito é criar uma frente ampla, sólida no enfrentamento ao ódio, entender que o inimigo está posto e é o mesmo para todos nós. Bolsonaro é não só um inimigo da esquerda mas um inimigo das pessoas pobres e vulneráveis, um genocida. É preciso articular uma esquerda ampla, que dialogue internamente, com planejamento. Aí sim teremos condições de enfrentar o que há de pior na política institucional, porque Bolsonaro e sua trupe de parlamentares se ramificam para todos os lados.

O Partido dos Trabalhadores (PT) perdeu a posição que ocupava antes, mas o Psol tem ganhado amplitude e destaque. A balança clássica dos partidos está se modificando?

Está, tenho certeza. Bolsonaro se elegeu com a força do antipetismo, e isso abriu o campo para outros partidos. O Psol tem ocupado esse lugar muito bem. Consegue se articular e atuar no campo que ficou vago, criando outros referenciais. E faz isso sem jogar terra sobre o PT, mostrando ser possível romper o antipetismo e construir uma esquerda que dialogue com os cidadãos.

Recentemente três covereadoras do Psol em São Paulo foram ameaçadas. O Brasil tem um histórico de perseguir e matar ativistas, de Chico Mendes a Marielle Franco. Por que isso acontece?

O coronelismo, o colonialismo, as estruturas de dominação ainda são muito fortes e dificultam a ascensão de defensores dos direitos humanos, da vida, do meio ambiente. Temos uma política moldada pela ótica de dominação, em que só há integração social pela riqueza. A política é enraizada, dominada e conduzida de forma racista e assassina, e precisa ser escancarada para que as pessoas tomem consciência. A flexibilização do acesso às armas promovida por Bolsonaro é para gerar uma guerra civil. É um projeto maligno para impor medo e manter-se no poder, e para que assim cada vez mais pessoas LGBTQIA+s, negros, mulheres e ativistas sejam executados.

Pra você, o que é ser mulher? 

Ser mulher é uma situação política e uma condição do existir, um jeito de viver. Sobretudo, é um baita desafio!

Antes você buscava referências, hoje é uma referência. O que diria para travestis e transexuais que estejam começando suas transições e trajetórias? 

Eu diria que, por mais difícil que seja, devem persistir e respeitar-se, não fazer nada por imposição ou pelo desejo dos outros. Não deixarem de ser pessoas espontâneas, terem suas referências e respeitarem a própria forma de ser.

Helena Vieira é escritora e transfeminista

Bianca Santana é jornalista, escritora e doutora em Ciência da Informação pela ECA-USP


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