A quarentena da mulher

A quarentena da mulher
(Reprodução)

 

Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de abril de 2020 é “quarentena”


Simone de Beauvoir nos lembra que basta haver uma crise política, econômica ou social para que os direitos das mulheres sejam questionados. Reflito sobre a experiência da quarentena a partir da mulher que sou e habito. O isolamento no espaço doméstico não é desconhecido por essa mulher. A crise sanitária, política e econômica proporcionada pela pandemia do coronavírus nos lembra pequenos confinamentos que, contudo, fazem parte da história das mulheres.

Em que casa a mulher que habito mora? Ela tece um lar, tece sujeiras, tece um desejo violento pelo devir?

Essa mulher tem lembranças remotas, de uma casa de madeira, no alto de uma montanha, metade inverno, metade fresco, de onde se avista a neve no cume da montanha. Ela pendura roupas no varal, assa o pão no quente da terra. Ela conhece o silêncio, às vezes murmura qualquer canto, às vezes seu olhar somente se perde no horizonte. Gosta de olhar a neve na montanha e sabe que a palavra da mulher deve ser contida. Degusta o silêncio em mordidas lentas, rói as palavras. Goza o abraço ao ir-se para dentro. O seu olhar atravessa o pão e as pessoas. Lambe os filhos.

Essa lembrança não é minha, talvez pertença a alguma avó que não conheci, que se mudou do Líbano para um distante Brasil. Essa mulher conhece o silêncio das mulheres que tecem o pão. A mulher que habito sabe que o confinamento tem um significado especial para as mulheres. Que estar em casa é cuidar dos filhos, é temperar as paixões, é estar circunscrita.

A circunscrição, a definição de um espaço doméstico como particular, o saber exatamente onde estão os filhos, são experiências que as mulheres que em mim habitam conhecem bem. Porque às mulheres na história foi inscrito o cuidado.

Eu me pergunto como alguns homens experienciam o cuidar de si no confinamento…. Como se experiencia o silêncio, o encontro radical consigo e o cuidado entre aqueles que estiveram tanto tempo na rua? Tendo o espaço da rua, do encontro com o outro, das conversas despretensiosas com algum desconhecido sido um gesto seu por tanto tempo, como vivem a ausência da cidade, a interioridade forçada, a circunscrição no agir?

Assumindo o risco de uma generalização desnecessária, tendo a pensar de uma forma diferente das mulheres.

Às mulheres, o espaço da palavra e da rua foi por muito tempo interdito. A loucura, a morte e o confinamento eram alguns dos destinos possíveis para aquelas que buscavam um outro lugar. Penso na palavra de uma mulher como Olympe de Gouges que no espaço público da França revolucionária publica a Declaração dos direitos da mulher e da cidadã em 1791, afirmando que a mulher nasce livre e com os mesmos direitos que o homem. Ela ainda diz que se as mulheres podem subir os degraus do cadafalso, devem ter o direito igualmente de subir os da tribuna.  Um de seus contemporâneos escreveu que ela possuía “uma imaginação exaltada” ao desejar ocupar o espaço público – destinado naturalmente aos homens – sendo guilhotinada por Robespierre. A imaginação e a ação das mulheres ainda são vistas por alguns com os braços cruzados. Porque imaginar é também inventar mundos possíveis, é ir do espaço da casa para o da viagem – política, sempre, como nos lembra Leila Slimani em seu diário do confinamento – é o desejo em forma de gesto, a literatura.

Ir à rua é também perder-se, abrir-se ao desconhecido. Nada move mais a mulher que habito do que me perder enquanto flano por uma cidade desconhecida. Ou, ainda, entrar em um ônibus sem saber onde vou descer. Esse gesto de abertura ao porvir – a aposta – é algo que ainda é interdito a muitas mulheres que habitam as mulheres que habito.

Se o espaço interior, o silêncio e a sabedoria de curar a si própria e de seu entorno estão inscritos nas mulheres que habito, o soltar-se ainda é atributo de algumas de nós. A quarentena, enfim, e o isolamento doméstico vem lembrar as nossas ancestrais, aquelas que ficavam em casa cuidando dos filhos. Mas lembra também das mulheres que hoje estão em casa, cuidando das tarefas domésticas e dos filhos, quase sozinhas. E também, e urgentemente, da violência contra as mulheres que cresceu 20% em São Paulo durante o confinamento.

O isolamento com as crianças me faz pensar também como pode haver um abismo entre as formas de experienciar a produção criativa e acadêmica para duas pessoas em um casal heterossexual compartilhando a quarentena.

Penso no desejo e no gesto, mas penso também na segurança física que muitas de nós não experienciam. Penso o quanto essa realidade fica mais crua na quarentena.  Penso nos pontos que conectam a mulher que habito àquela que mora ao lado, que me chamou de vagabunda e me mandou ir lavar roupa por cantar, tocar e bater panela na janela de casa durante o isolamento.

Penso no gesto que me une àquelas que já se foram. E também àquelas que estão bem vivas e sendo aqui.  Porque estar em casa é lembrar que já estivemos tanto tempo em casa, e habitar essa mulher é estar em casa com todas as outras mulheres.

 

Thaís Tanure, 32, é historiadora em Belo Horizonte, MG

 

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