A primavera de Praga
Em 1976 – já com duas indicações ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro por seus filmes tchecos Amores de Uma Loira (1964) e A Bola de Bombeiros (1967) e um Grand Prix do Festival de Cannes pelo seu primeiro filme americano, Taking Off (1971) –, fazia sua estreia oficial em Hollywood.
Naquele ano, superava Frederico Fellini, Stanley Kubrick e Sidney Lumet como melhor diretor na cerimônia do Oscar – ano em que seu Um Estranho no Ninho entrava para o seleto rol de um dos únicos três filmes na história do evento a levar os cinco prêmios principais (melhor filme, diretor, roteiro, ator e atriz).
Aos 80 anos e com sucessos como Hair, Amadeus, Valmont, O Povo Contra Larry Flint e O Mundo de Andy em seu currículo – que serão exibidos entre 17 e 19 de abril em uma mostra completa de sua obra na Caixa Cultural do Rio de Janeiro –, Milos Forman concedeu à CULT uma entrevista exclusiva, por telefone, de sua casa, em Connecticut, nos EUA.
Com sotaque ainda carregado, apesar das quatro décadas de exílio, o diretor relata curiosidades de bastidores de seus dois grandes filmes: a história de como chegou até ele, dez anos atrasado, o livro que serviu de base para Um Estranho no Ninho; e a origem dos trejeitos do Mozart que retratou em Amadeus: “uma velhinha de Praga escreve para sua prima, outra velhinha de Paris, dizendo que estava horrorizada com o som animalesco da risada do jovem Mozart”.
Também fala sobre os dois regimes totalitários, comunista e nazista, sob os quais viveu na Tchecoslováquia; a relação com o ator Jack Nicholson e a cantora Courtney Love, para quem tirou dinheiro do próprio bolso a fim de garantir que participasse de seu filme; e a admiração pelo escritor Milan Kundera, que foi seu professor na faculdade.
CULT – Qual era sua percepção do Partido Comunista quando vivia na Tchecoslováquia? Como o regime totalitário afetou seus filmes dos anos 1950 e 60?
Milos Forman – Os comunistas sempre retrataram a cultura ocidental como decadente. Mas, é óbvio, eu não aceitava o que diziam. Era claro pra mim que se tratava de propaganda política.
Quanto aos filmes, nós, cineastas, tínhamos consciência de que estávamos tocando em alguns problemas políticos – se você faz algo que é real, em que você diz a verdade, sempre se torna político.
Mas, por conta da atmosfera um pouco mais livre na Tchecoslováquia depois de Stálin e Kruschév [sucessor de Stálin no PC da União Soviética] e porque meus filmes eram considerados comédias, eles eram tolerados. Não tive grandes problemas.
Por haver perdido seus pais no Holocausto, nunca sentiu vontade de dirigir um filme sobre a Segunda Guerra?
É algo pessoal que eu mesmo não entendo completamente. Nunca tive o ímpeto ou desejo de fazer um filme sobre o Holocausto. Por algum motivo, não quero revisitar esse período da minha vida. Mas estou em paz com ele.
O Povo Contra Larry Flint (1996), centrado no editor de uma revista masculina, trata, sobretudo, de liberdade de expressão. Como se sentiu quando alguns críticos afirmaram que o filme fazia apologia da pornografia?
Isso é absolutamente ridículo. É a mesma coisa que dizer que temos que banir Romeu e Julieta porque glorifica o suicídio na adolescência. O filme não é sobre isso. Fiquei muito surpreso, mas essa foi uma visão da extrema direita – geralmente, a pressão para controlar a fala vem, o tempo todo, dessas pessoas.
O senhor geralmente lê o que a crítica diz sobre o seu trabalho?
Claro, tenho curiosidade. Não levo as críticas com leveza, mas também não as levo tão a sério. Não sei que tipo de educação formal os críticos têm hoje em dia, mas, se precisam assistir a quatro, cinco, seis filmes por semana, ao longo de vários anos, eles não têm uma reação pura como a do público.
Tendo em vista o histórico de Courtney Love com o uso de drogas, foi um risco trabalhar com a atriz em Larry Flint?
Veja, o estúdio não queria que eu a escalasse porque não queriam segurá-la, por causa desse histórico com as drogas. Então tive que ir atrás disso eu mesmo, mas o custo era de US$ 1 milhão, e o estúdio disse que não iria pagar este valor.
Mas eu acreditava tanto nela que eu, Woody Harrelson [protagonista do filme], Oliver Stone [produtor], Michael Hausman [produtor] e a própria Courtney entramos com US$ 200 mil cada.
Quando decidi que a queria, eu disse “Courtney, vou lutar por você se me der sua palavra de que não vai me trair”. E ela me deu sua palavra, e acreditei nela. Ela ficou limpa durante a filmagem inteira, e foi uma pessoa absolutamente maravilhosa de trabalhar.
No mesmo ano em que filmou O Mundo de Andy (1999), com Jim Carey no papel de Andy Kaufman, batizou seus filhos gêmeos de Jim e Andy. O senhor tem uma relação intensa com os atores?
Sim. É o ator que as pessoas vêem na tela, não eu. Mas é um fenômeno engraçado, o cinema. Enquanto filmamos, somos como uma família muito próxima; e, quando terminamos, muitas vezes nunca mais nos vemos. Cada um vai para o seu lado.
Jack Nicholson é um dos atores mais prestigiados com quem já trabalhou. Como foi a experiência?
Foi absolutamente maravilhosa. Do momento em que chega ao set até o momento em que vai embora, é a pessoa mais profissional, concentrada, bem preparada e colaborativa que já conheci na minha vida.
Mas, antes de chegar e após ir embora do set… Não sei até hoje se ele é louco ou não. Como em muitas pessoas talentosas, sua personalidade é complicada, original e interessante.
Como o livro homônimo de Ken Kesey, que deu origem a Um Estranho no Ninho (1975), chegou ao senhor?
Nos anos 1960, Kirk Douglas tinha os direitos do livro e queria fazer um filme. Ele estava na Tchecoslováquia à época, quando viu alguns de meus trabalhos e me perguntou se poderia me enviar o livro. Respondi “é claro, meu Deus, adoraria que fizesse isso”, mas o livro nunca chegou.
Acabei por recebê-lo de Michael Douglas, seis ou sete anos depois. Ele não sabia que o pai já havia falado sobre ele comigo.
Foi somente anos depois, quando reencontrei Kirk, que descobri que, sim, ele havia me enviado o livro, mas a censura comunista na fronteira o confiscara – e não disse nada, nem a mim, nem a ele.
Qual o valor desse filme em sua cinematografia?
Você doa tanto o seu coração e a sua mente a cada filme que todos são significantes e valiosos, mas esse foi mais ainda devido a seu sucesso. Ele me abriu as portas para Hollywood, ganhou cinco Oscars, fez muito dinheiro… É um filme muito, muito importante para mim.
E o fato de que hoje as pessoas ainda assistem a ele me deixa muito feliz.
Mas o Oscar não é influenciado mais pelo marketing do que pela qualidade?
Bem, sempre foi assim e sempre será. Mas vou lhe dizer uma coisa: acredito que ninguém pode realmente influenciar ou subornar a Academia. É impossível. Caso contrário, somente os blockbusters ganhariam.
Veja este ano, por exemplo: ganhou um filme mudo, em preto e branco, feito por franceses [O Artista]. E, acredite, houve muito marketing de filmes americanos, com as companhias gastando muito dinheiro.
Acha que O Artista mereceu os prêmios?
Gostei dos filmes deste ano e acho, sim, que ele mereceu os prêmios. Foi muito ousado e original fazer um filme como aquele.
Seu filme mais premiado é Amadeus, com oito Oscars. Antes de ser lançado, o senhor estava preocupado com a reação à sua representação de um Mozart quase frívolo?
Não, porque não era uma biografia, era ficção. E, veja bem, provavelmente não há tanta diferença entre como ele era e como foi retratado no filme. Quando lemos as cartas de Mozart, meu Deus, como são obscenas! Não acho que estávamos tão longe da verdade.
Em que foi baseada a risada aguda da personagem?
Há uma carta em que uma velhinha de Praga escreve para sua prima, outra velhinha de Paris, dizendo que fez uma festa em sua casa e que estava horrorizada com o som animalesco da risada do jovem Mozart.
É tudo o que sabemos. Como soava, não imaginamos; então estava nas mãos do [ator] Tom Hulce inventá-la.
A maior parte de seus protagonistas recusa-se a se conformar com sociedades opressivas. Esta é uma escolha consciente?
Com certeza. Estes indivíduos são mais interessantes do que aqueles que não estão em conflito com a sociedade. Há espaço para o drama quando há um conflito entre o indivíduo e a instituição.
O senhor é conterrâneo e contemporâneo do escritor Milan Kundera. Qual sua relação com ele?
Apesar de ele ser apenas três anos mais velho que eu, já era meu professor de literatura quando eu cursava a faculdade [Academia de Artes Performáticas de Praga]. Falo com ele de tempos em tempos, mas é muito recluso, mora em Paris. Adoro seu trabalho, é um grande escritor.
Tem algum projeto profissional em mente?
No momento, não. Meu Deus, sou um idoso, não me apresse.
(1) Comentário
Como pode, em meio à barbárie política do século XX, Milos Forman transformar a própria vida numa obra de arte?! Coisas de gênio!
Sílvio Medeiros
Campinas, é outono de 2012.