A Pasárgada de Mário e seus itinerários

A Pasárgada de Mário e seus itinerários

Correspondências entre Mário de Andrade e seu “tio” Pio Lourenço revelam extenso debate intelectual e traços de uma sólida amizade

Wilker Sousa

Não bastasse a pluralidade de sua obra ficcional, Mário de Andrade (1893-1945) deixou à cultura brasileira um legado igualmente diverso de produções intelectuais em áreas como música, crítica de arte e folclore. Ao longo de seu percurso como artista e pesquisador, um gênero ocupou destaque em sua formação: a epistolografia. Desde os primeiros esboços literários até a súbita morte em 1945, o autor de Macunaíma manteve intensa correspondência com ícones da arte brasileira da época. Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Anita Malfatti e Cândido Portinari foram alguns dos confidentes com os quais Mário discutiu longamente acerca de sua produção ficcional, dos desdobramentos do movimento modernista e outros temas-chave de sua carreira.

Recém-lançado, o livro Pio & Mário – Diálogo da vida inteira permite analisar as correspondências de Mário, não só do ponto de vista artístico-intelectual, mas também sob o viés familiar. Trata-se do conjunto das cartas trocadas com Pio Lourenço Corrêa (1875-1957), marido de Zulmira Moraes Rocha, prima do autor.  Mário habituara-se desde a infância a chamá-lo tio. Dono da Fazenda Sapucaia, em Araraquara, refúgio onde Mário escrevera Macunaíma num arroubo de inspiração, Pio Lourenço “era pequeno, magro, de feições corretas. Tinha um olhar penetrante que parecia sempre comandar, exprimindo um temperamento autoritário como poucos”, como descreve Antonio Candido no prefácio do livro. O interlocutor de Mário era devoto do conhecimento. Dominava quatro idiomas e possuía uma notável coleção de enciclopédias e dicionários em sua biblioteca.

Duas tragédias familiares marcaram o encontro entre o intelectual vanguardista e seu “tio” conservador. Em junho de 1913, quando faleceu Renato, irmão de Mário, Pio o levou pela primeira vez à Fazenda Sapucaia para recuperar-se de profunda depressão. Quatro anos mais tarde, quem faleceu foi Carlos Augusto de Andrade, pai de Mário e grande amigo de Pio. Naquele mesmo ano, começaram as correspondências, que cessariam somente em 1945. “A correspondência é uma versão miniaturizada do trajeto, visto na perspectiva da família, que Mário de Andrade percorreu desde o livro de estreia até sua glorificação final de escritor”, escreveu Gilda de Mello e Souza (1919-2005), autora de O arcaico e o moderno: história de uma amizade, ensaio que está no livro.

“Metido com essa coisa de folclore”

Os assuntos abordados nas cartas vão desde o cotidiano da fazenda até questões pontuais sobre folclore, linguagem e criação literária. Desde o início da carreira, Mário costumava submeter sua obra ao crivo crítico de Pio. Embora avesso aos princípios modernistas, o “tio” não se furtava em reconhecer os méritos do jovem autor. Em carta de 21 de agosto de 1917, a respeito de Há uma gota de sangue em cada poema, livro de estreia de Mário, Pio comenta: “Gosto do seu fraseado, sadio, forte e original”, mas faz ressalvas em relação ao uso de versos livres: “O metro…eu não percebo nada de metro; outras técnicas de verso…eu não percebo nada disso”.

Outra questão recorrente são as pesquisas de Mário em busca do caráter nacional. Em depoimento de agosto de 1927, Mário se diz “metido com essa coisa de folclore” e pede ao “tio” para que o ajude na busca de dados sobre o boi: “Escarafunche bem a memória, veja se se lembra de alguma espécie de documento folclórico referente a boi. No ano que vem publico um voluminho bem interessante sobre as ‘Melodias do Boi’. O primeiro capítulo ou parte do livro é mostrando a obsessão que o brasileiro tem pelo boi”. O livro só viria a ser publicado postumamente, mas a figura folclórica do boi seria trabalhada pelo autor de modo a ser incorporada à caracterização da identidade nacional.

Na medida em que se passavam os anos, a melancolia acentuou-se em Mário. Inquietações e impasses sobre sua obra o consumiam. Questionava-se sobre a importância dela e em que medida ficara refém do projeto estético modernista. Nos anos 1940, tido como um dos grandes nomes da arte brasileira, mostrava-se declaradamente avesso à fama e suas “chatices”. Não encontrava um tempo para ir à “chacra”, em Araraquara. Queria voltar à sua Pasárgada e desfrutar da hospitalidade e carinho de seus amigos Pio e Zulmira, como manifestou na última carta que enviou a Pio, quinze dias antes de sua morte, em fevereiro de 1945:

“Não sei quando poderei ir à chacra. E é impossível que o Sr. não saiba o quanto isso é o meu desejo. Mas afinal desde meados do ano passado que me vi enfim obrigado a encarar o problema da celebridade (…) Desde junho, quando não fui praí como pretendia, venho deixando a ida e o prazer ‘pro mês que vem’. Não sei quando chegará esse mês que vem (…) Acredite que o sorriso que estou esgarnizando [desculpe] é de bastante amargura. Estou mesmo carecendo de um bocado de sense of humor. Lembrança a Zulmira e acredite neste amigo fiel, Mário.”

Pio & Mário – Diálogo da vida inteira

Mário de Andrade e
Pio Lourenço Corrêa
Intr.: Gilda de Mello e Souza
Ouro sobre azul / Edições SESC-SP
424 págs. – R$ 96

A importância das cartas entre pio e mário

A reunião das correspondências entre Mário de Andrade e Pio Lourenço Corrêa é a maior e mais duradoura da epistolografia andradiana. São 189, entre cartas e bilhetes trocados de 1917 a 1945. A reunião do material é fruto da tese de mestrado intitulada A riqueza nas diferenças, defendida em 2007 por Denise Guaranha, na USP. Durante quase quatro anos, foram levantadas cartas e imagens inéditas dos correspondentes. Segundo Denise, “somente Pio Lourenço possuía 10.200 fichas com anotações sobre Mário”.

Para Antonio Candido, “trata-se de uma correspondência diferente que convida o leitor a descobrir um personagem fascinante, um inesperado fazendeiro de grande cultura, cuja escrita correta e expressiva faz sentir, em cada linha, o cunho de uma personalidade singular”.

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