A Ópera-Fantasma de Nuno Ramos

A Ópera-Fantasma de Nuno Ramos

Francisco Bosco

Um avião sobrevoa as montanhas de Nevada. Lá embaixo, onde há alguns anos antes havia ainda milhares de cavalos Mustang, agora encontra-se apenas um pequeno bando deles, não mais que meia-dúzia, incluindo um potro e uma égua em idade avançada. O avião está lá para caçá-los. Seu piloto – junto com o parceiro que está em terra, pronto para surpreender os cavalos no ponto ao qual o avião os impele – fizera isso a sua vida inteira. O avião, as montanhas, os cavalos, a caçada de laço, o sono ao relento: é a vida livre, vida de cowboys inimigos do trabalho alienado e assalariado. Os cowboys, “os últimos homens verdadeiros do mundo”, diz alguém.

Mas o mundo mudara. A civilização trouxera emprego e extermínio em massa para cavalos e homens livres. Aquele bando sobrevivente de animais magros era a evidência melancólica desse ocaso. Os homens, por não saberem fazer outra coisa, vão ao seu encalço. Tocaiam-nos, enlaçam-nos, derrubam-nos, amarram-nos. Mas a cena tem algo de irreal, de covardia e de absurdo. São tão poucos os cavalos, que sua venda não pagará sequer o combustível do avião. São tão desprotegidos e apequenados, que a luta contra os homens e suas máquinas é moralmente intolerável. É uma luta vã. É o fim de um mundo. “É como capturar um sonho”, diz um cowboy.

Dessa vasta landscape de Nevada, corta para uma charmosa galeria na Gávea, Rio de Janeiro. Ali, dentro de uma sala climatizada, encontram-se dois barcos abalroados um no outro. Seus cascos de madeira estão cobertos por uma camada de sabão. De dentro deles, por caixas de som, saem as vozes de um homem e de um coro. Na antessala, há uma encadernação em espiral com o título Mar morto (Soap-opera 2). Nessas páginas estão escritas as palavras do homem e do coro.

Também aqui se trata do fim de um mundo. E o que Nuno Ramos fez, por meio desses barcos encavalados e como que petrificados, foi capturar um sonho. Mar morto, aqui, não é um topônimo. Não se refere ao mar oriental, alimentado pelo rio Jordão, em que de tão salgado nenhum peixe sobrevive. Não é desse mar mortífero, mar de sal, que se trata, mas de um mar mortificado, insípido, mar sem sal, o Mar, o grande mar de Ahab e Moby Dick, mar de Caymmi e Conrad, de Homero e Camões, agora ex-mar, “maníaco encanecido”, “poça pálida e rasa”. Mar domesticado, apequenado, transformado numa “banheira de água morna”.

Pois é essa a morte que o naufrágio fossilizado dos barcos conjura. O sabão que os envolve confere a seu espetáculo uma intensa força dialética: o sabão esteriliza, mas é gosmento como a matéria putrefata dos mortos náufragos fundidos à água do mar; o sabão petrifica, mas seu visco evoca a lubricidade do mar misterioso, em cujas profundezas tantos marinheiros acasalaram-se com Iemanjá e as sereias. O sabão é glória e conforto, natureza e cultura, presente e passado, vivo e mumificado.

As vozes que se ouvem são as memórias póstumas dos dois barcos. Sim, soap-opera, em trocadilho literalizante (quando o habitual é o contrário), ópera do sabão. Mas sobretudo ópera-fantasma: uma obra de arte total, de que não vemos os atores, pois estão mortos ou reduzidos a uma consciência tagarelante que morre aos poucos, sem sentido épico. Nessa ópera, o coro representa o arcaico, o real, a natureza indomada. O coro declama trechos de grandes obras sobre o mar, sobre naufrágios: “Ai! Ai! Faze-nos ver nossos amigos/ sendo levados ao sabor das ondas/ nas praias onde o mar cobre e descobre/ continuamente os corpos já sem vida/ movendo-os de um lado para outro!”. Ao passo que a voz solitária debate-se dentro de um corpo-nau “preso dentro”, “dentro de um naufrágio”, enquanto morre “de tédio e aborrecimento, gozando o conforto perfeito dos seus pés quentinhos”.

Como já havia feito em seu último e perturbador livro, Ó, em Mar morto Nuno Ramos instala e instaura um canto melancólico e sombrio (a que não falta certo humor) sobre a civilização. Esse canto é, quanto aos meios e aos fins, diferente daquele que encontramos na maior parte de seu brilhante ensaísmo, como se pode verificar nos textos reunidos em Ensaio geral. Nesses, há, a cada frase, a alegria do descortinamento do mundo pelas ideias e, reciprocamente, o júbilo pelos fenômenos em sua beleza revelados. Há uma confiança no pensamento e uma adesão serena a suas possibilidades. Já em Ó, Nuno parece aproximar-se mais de sua linguagem visual, que não é exata e límpida como o ensaísmo a que me referi, e sim excessiva, impura, até dilacerada. Como o próprio título do livro sugere, trata-se de algo entre a palavra e o grito, o semântico e o físico, entre matéria e linguagem. Parece haver essa tensão ou movimento pendular no interior da obra – visual, escrita, visual-escrita – de Nuno Ramos, tensão a que talvez ele tenha se referido ao dizer-se “sem conseguir escolher se a vida é benção ou matéria estúpida”. Da perspectiva de quem o lê e vê, é benção, mesmo se matéria estúpida.

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Novembro

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