A morte é uma transação solidária
(Foto: Arthur Omar/O Esplendor dos Contrários)
Odiadores das redes pedem que a morte seja esvaziada do seu sentido político
O Brasil não para de produzir novelas da vida real, simbologias e contos morais de uma democracia enferma e em crise, um reality show em que os personagens agem e são julgados em tempo real: parlamentares, políticos, empresários e suas famílias, mulheres, filhos.
Em um regime de julgamento em tempo real, também um número cada vez maior de atores sociais saem do anonimato ou de seus nichos e “lugares de fala” para julgar e serem julgados no parlamento virtual que se tornaram as redes sociais.
Fonte de debates decisivos e pedagógicos, mas também “esgoto público” de onde emerge o lodo, as redes produzem uma fala coletiva dissonante, simultaneamente amorosa, odiosa, perversa e no limite de todos os valores que achávamos pactuados.
Acabamos de passar por mais uma dessas provações seriais. A morte de Dona Marisa Letícia, mulher do ex-presidente Lula, moveu algumas das placas tectônicas na disputa dos imaginários, expondo de forma dolorosa, perversa e amorosa uma “comunidade imaginada” explodida.
Em um psicodrama social, os sintomas e indícios de uma patologia coletiva não param de emergir. A morte de Dona Marisa Letícia, ex-primeira dama do Brasil, deveria produzir uma trégua nos discursos políticos hiperpolarizados e hostis, mas não foi o que vimos.
Concorrendo com a onda de reconhecimento e solidariedade dos que pranteavam “Dona Marisa”, a mulher simples, arrimo de família, companheira de lutas que foi catapultada na roda viva das disputas políticas – uma outra multidão se comprazia em destilar ódio, deboche, vazamento de informações médicas sigilosas, memes e mensagens infames desejando sua morte e que produziram perplexidade. O país da delicadeza perdida volta a expor suas entranhas.
Mais do que isso temos uma classe média e elite que quer ensinar um líder popular e carismático como Lula a se comportar no velório da própria esposa. Pedem compostura e decoro, pedem apatia, pedem que a morte seja esvaziada do seu sentido político para um líder cuja vida pessoal e da sua mulher vem sendo devassada e exposta em praça pública, pela mídia, pela Lava Jato, pelo judiciário, por uma multidão de julgadores.
Sendo os vazamentos das conversas da vida privada, conversa de mãe e filho, falas informais, sem nenhum conteúdo conectado a Lava Jato ou a corrupção, o motor que mais produz e multiplica o ódio. Se demoniza e se moraliza os que vamos julgar pelo que fazem em uma esfera da intimidade e da privacidade. Confundindo propositadamente os campos.
A dona e a dama
Ah, esses pobres não sabem mesmo nem como se portar! Usam palavrões e palavras chulas na intimidade, cozinham “pé de frango” no Palácio e não aprenderam nas novelas das oito a fazer carão e botar óculos escuros como nos velórios da elite, onde temos que falar baixo e não rir da nossa própria tragédia, como fez Lula em alguns momentos no velório de Dona Marisa, ao falar da companheira morta, como fazem milhões de brasileiros que tiram forças para rir da crise, dos retrocessos e do infortúnio.
Não entenderam que a morte não apazígua a luta e nem os ânimos, renova, porque na morte se disputa simbologias e legado, se disputa a vida. São pessoas que passam da alegria ao choro compulsivo e que não tomam Prozac, Rivotril ou drogas que tornam nossa dor mais suportável para os outros.
O nível de demonização do casal Lula e Marisa e todo o processo de linchamento midiático prévio a essa morte é mais que um case político-jurídico e explicita um processo em parte bem sucedido de desqualificação moral de todo um campo, que eu sequer definiria como simplesmente “de esquerda”. É mais do que isso, trata-se de uma vivência social nova e disruptiva que emergiu nas últimas décadas apresentando uma outra matriz cultural e política: um Brasil sem gravata!
Existe um ódio a Lula e Marisa, um ressentimento infinito, que não tem nada a ver com a sanha moralizante da Lava Jato e o “combate à corrupção”. O ódio é pelo que representam: o povo, os pobres, que furaram o bloqueio e mobilidade das classes e grupos sociais. A “Dona Marisa” que levou frango e polenta para o Palácio do Alvorada, que pediu para os cozinheiros da República prepararem pé de frango para servir no banquete, que usava legging, isoporzinho, fazia churrasco e bebia conhaque dryer, guaraná e aguardente em vez de whisky.
No Brasil, a palavra “Dona” tem um significado especial e paradoxal, pois foi apropriada e expropriada dos títulos nobiliários que serviam como ostentação de poder no Império português e depois da nobreza brasileira. Dom e Dona foram títulos de nobreza que serviram a monarcas, príncipes, infantes e nobres portugueses bispos e que tais.
Pois hoje Dona no Brasil qualifica da mulher mais rica até uma jovem mãe beneficiária da Bolsa Família, uma conversão da nobreza imperial em nobreza popular brasileira. “Dona Maria”, “Dona Marisa”, trata-se de uma deferência “antiga” e que talvez desapareça por desuso e pela generalização do senhoras e senhores.
Dona, dizem os dicionários, “é um tratamento dispensado a senhoras de alta linhagem. Título honorífico, ou simplesmente um título que antecede o nome de qualquer mulher adulta a quem se deseja demonstrar cortesia, deferência ou respeito. Usado em geral no tratamento das senhoras casadas ou de certa condição social. Proprietária de alguma coisa. Senhora: dona de casa. Mulher, esposa.”
Talvez uma mulher contemporânea não aceite o título de “Dona”, talvez não sirva aos novos feminismos, mas serviu para produzir uma nobreza popular e qualificar mulheres sem riquezas e sem nome, mas respeitadas e reconhecidas socialmente.
Dona Marisa também acrescentou à sua biografia outro título extraordinário, de Primeira Dama do Brasil, também controverso, se pensarmos nos discursos femininos e feministas contemporâneos. Afinal, em um mundo patriarcal e machista, a Primeira-Dama do Brasil não tem nenhuma função oficial definida por lei. É um protocolo da diplomacia, não tem salário e nem é considerada parte integrante da administração federal. Uma figura simbólica que, sinal dos tempos, não existiu enquanto a Presidenta Dilma Roussef, uma mulher sem “damos” e “sem homem” que governou o país.
Marisa Letícia foi de “dona de casa” a Dona e Dama o que produziu uma onda de piadas e chacotas duvidando de suas qualificações para tão alto título nobiliário, quando seu companheiro também escandalizava certa elite ao se tornar, vindo do interior, da pobreza, das fábricas, do mundo dos trabalhadores subalternos e assalariados, o Presidente da República do Brasil.
Como desconstruir simbologias? A trajetória e a biografia de Lula e Marisa talvez sejam a parte mais difícil e mesmo impossível de serem demolidas pelo aparato jurídico-midiático dos conservadores, porque não são da ordem da racionalidade política simplesmente. Trata-se de um capital afetivo e sentimental.
Mas a operação está em curso e o processo de desumanização faz parte do roteiro. Por isso é preciso barrar qualquer comoção, tirar a humanidade, transformar a dor da morte ou da doença em castigo de um crime “merecido”. Por isso a disputa em torno da memória e o juramento de Lula diante do corpo morto da mulher: “Eu tenho 71 anos. Não sei se Deus me levará em curto prazo. Eu acho que vou viver muito porque eu quero, eu quero provar que os facínoras que levantaram leviandades com a Marisa tenham um dia a humildade de pedir desculpas a ela.”
A vingança dos vivos contra os mortos
O que mais chocou o Brasil foi descobrir que mesmo os que deveriam ser os mais humanos entre os humanos, os médicos, os profissionais que fazem um juramento de colocar a vida acima de qualquer valor ou ideologia, também expuseram seu ressentimento e ódio “protegidos” nos grupos de Whatsapp, essa “deep web” em que se conspira entre iguais.
É como se vivêssemos na infância das redes, em que os comportamentos extravasam sem controle, as palavras são despejadas sem censura ou ponderação, o preconceito, o racismo, os sentimentos mais odiosos são expressos como se estivessem protegidos pela distância, pela impessoalidade e/ou pelo anonimato. Daí a importância cada vez maior de uma pedagogia dos processos, demissões e punições, as consequências legais e sociais dos atos de fala, uma judicialização dos comportamentos que substitui a coesão social rompida.
A jornada dos “da Silva” vai do céu ao inferno, mas é bela, forte e pedagógica. O que deixa perplexo é ver o nível de embrutecimento e ódio dos que comemoram a morte de uma mulher brasileira com buzinaço, post e mensagens de ódio! Um país fraturado e fracionado que terá que se reencontrar. Que existam pessoas que tem ódio de outros já sabíamos, a questão é chegar no ponto em que a expressão do ódio e dos que tripudiam da vida possa encontrar um ambiente social que os chancelem e legitimem. Eis o que é terrível! Os vivos se vingam dos mortos gerenciando sua memória.
Comunidade imaginada explodida
A volatilidade dos valores e humores diante dos fatos em disputa, o choque e polarização das opiniões, nos dão a sensação que o Brasil hoje é uma “comunidade imaginada” que foi explodida , se pensarmos em uma coesão social, se pensarmos que uma “comunidade imaginada”, como propôs Benedict Anderson em que seus membros trazem em mente uma imagem mental de afinidades mútua.
Parte dessa “imagem mental” de nós mesmos é co-produzida e mantida pelas mídias com seus discursos totalizantes e que buscam monopolizar e conduzir a disputa narrativa. Um monopólio dos discursos que hoje tem na ruidocracia das redes um contraponto decisivo e também novas formas de produção de choque e coesão.
Acabou o amor ou acabaram com ele? A lua de mel com o presidente Lula Macunaíma da Silva (acertos e erros foram cometidos em um processo a quente), produziu coesão social e sensibilizou os mais diversos grupos, de banqueiros a empresários que enriqueceram aos beneficiários da Bolsa Família, das cotas raciais, dos que colocaram os pés em uma universidade, da mobilidade econômica e subjetiva.
Muitos que se viram pela primeira vez espelhados na figura de um torneiro mecânico de pouca instrução efeito de uma sabedoria coletiva. Lula mais uma vez faz uma fala impressionante em pleno velório sobre o seu próprio personagem que de certa forma já se vê como “póstumo”, apesar de inteiramente engajado nas lutas do presente urgente e das disputas eleitorais de 2018 em que poderá ressurgir de um processo de demolição ou sair de cena.
“Eu sou o resultado da consciência política dos trabalhadores brasileiros. Na hora que ele evolui, eu evoluo. Eu sou resultado das greves, mas também sou resultado de uma menina que parecia frágil e que me deu a garantia que eu poderia viajar para ajudar candidatura, para ajudar criar sindicalismos combativos.”
Impressiona como a figura de Dona Maria Letícia nesse processo sintetiza algo das mulheres brasileiras, nossas mães e avós, mas também jovens mulheres que ainda apostam no sonho de uma governança a dois: um casamento de décadas, algo pouco trivial, na era do descarte sexual e afetivo e dos amores líquidos. Que não são nem piores e nem melhores que outros arranjos. Só trazem novos desafios.
“O casamento é o maior exercício de democracia que um ser humano pode fazer. É no casamento que você aprende a ceder. E tem que ceder todo o dia. E tem que brigar todo o dia para conquistar alguma coisa”, diz Lula sobre a relação assimétrica e de poder entre os homens e suas companheiras, mesmo nas relações mais bem resolvidas.
Essas sínteses paradoxais tornam os discursos sobre as mulheres, sobre o feminismo, sobre o machismo, mais complexos e derretem os modelos, sejam os padrões ou os disruptivos. A história da vida privada é uma enciclopédia fascinante de diferenças e repetições. Nela, uma dona de casa pode juntar outras mulheres de metalúrgicos presos pela ditadura militar e fazer um protesto histórico, para defender seus maridos mas também porque se sente parte de um coletivo maior que sua família.
Tanto a se aprender com cada vida! Mas a volatilidade dos valores e humores diante de fatos em disputa, o choque e polarização das opiniões empobrecem as análises e visões, nos dão a sensação que o Brasil hoje é uma “comunidade imaginada” que foi explodida, se pensarmos em uma coesão social, se pensarmos que uma “comunidade imaginada”, como propôs Benedict Anderson em que seus membros constroem uma imagem mental de afinidades mútua.
Parte dessa “imagem mental” de nós mesmos é co-produzida e mantida pelas mídias com seus discursos totalizantes e que buscam monopolizar e conduzir a disputa narrativa. Um monopólio dos discursos que hoje tem na ruidocracia das redes um contraponto decisivo e também novas formas de produção de choque, conflitos e coesão.
Morte e montagem
“A morte funciona como uma montagem fulminante da nossa vida. (…) “enquanto estamos vivos, falta-nos sentido, e a linguagem da nossa vida (com que nos expressamos e a que, por conseguinte, atribuímos a máxima importância) é intraduzível: um caos de possibilidades, uma busca de relações e de significados sem solução de continuidade.”
O cineasta italiano Pier Paolo Pasolini, em O Empirismo Herege, faz essa bela analogia entre a morte e a montagem cinematográfica, mas poderia enfatizar que mesmo depois de mortos, em uma sociedade fracionada ou polarizada, há uma disputa feroz em torno do sentido das vidas.
A morte de Dona Marisa apenas deixou antever a disputa vital e decisiva para a democracia em que estamos metidos! Dona Marisa, que era filha de imigrantes, que foi babá da família Cândido Portinari aos 11 anos, que foi operária em uma fábrica de bombons, que teve o primeiro marido assassinado, que casou com um líder operário do ABC, que criou quatro filhos e ajudou a construir um dos maiores partidos da esquerda contemporânea sem nunca ter estado no horizonte dos possíveis, virou a primeira-dama do Brasil ao lado do primeiro operário-presidente.
Não acumulou milhões, nem jóias, nem fez compras nas boutiques de Nova York, Londres e Paris. Comprou dois pedalinhos para os netos e teve a vida devassada e expostas em acusações não comprovadas de “enriquecimento ilícito”. Como acabam os contos morais em uma democracia explodida? A morte talvez seja esse único momento em que se pode receber e aceitar o abraço até do seu pior inimigo. A morte é uma “transação solitária” como define o escritor Ray Bradbury, mas uma comunidade imagina e em luta pode transmutar o seu sentido. Velórios foram inventados para os vivos!