A morte como mecanismo de controle
Manifestação no Largo do Machado, zona sul do Rio, contra as ações da PM nas favelas (Tomaz Silva/Agência Brasil)
Por Maria Luisa Lima Teixeira
Enquanto país estruturalmente racista, o Brasil utiliza de mecanismos políticos e sociais para a manutenção da posição de subalternidade das pessoas negras, bem como para garantir o controle estatal sobre suas vidas e, dessa forma, não alterar as engrenagens e, consequente, o funcionamento da máquina capitalista ao qual está integrado. Máquina esta cuja exploração racial é condição sine qua non para a sua efetividade. Partindo dessa análise, torna-se possível afirmar que o racismo é ferramenta fundamental para a manutenção e exercício das relações de poder, ponto examinado com maestria pelos filósofos Michel Focault e Giorgio Agamben.
Michel Focault, em sua obra, postula o conceito de biopoder, forma de poder que diz respeito à proteção e preservação da vida, podendo se dar através de estratégias para driblar os índices de morbidade e mortalidade, ou seja, o investimento na vida da população resulta na redução de tais índices e, consequente, atribuição de força ao Estado. Contudo, o funcionamento dessa forma aparentemente positiva de poder é definido pelo racismo de Estado que determina a parcela da população que irá se beneficiar das políticas de proteção a vida e, como se sabe, essas políticas são destinadas àqueles considerados racialmente superiores.
O autor definiu como racismo de Estado o processo através do qual uma parcela da população é segregada de maneira que não possa vir a existir como parte da sociedade, servindo, em sua posição de marginalidade, para o fortalecimento da raça dominante.
Aproxima-se do conceito de racismo de Estado o conceito de tanatopolítica de Agamben, que trata da possibilidade real de legitimação da morte sem que esta tenha de ser legalizada. Agamben parte da existência de um “soberano”: aquele com poder para decidir quem merece viver ou não e que, através da anulação de direitos básicos e da exposição à morte, elimina aqueles cuja vida é despropriada de valor. Porém, o que leva o soberano a eliminação de vidas que não expõem risco eminente à população protegida pelo Estado? Na tentativa de responder a presente pergunta, o autor pontua que além de muitas vezes essas vidas não representarem risco moral, físico ou biológico para a sociedade da qual faz parte, o investimento do Estado para a eliminação desses sujeitos é ainda mais custoso do que deixá-los morrer naturalmente. Porém a lógica da tanatopolítica perpassa esses pontos a fim da garantia da efetividade do biopoder para a camada privilegiada. Trata-se da troca de uma vida pela outra através do movimento do Estado que transforma minorias étnicas em seres matáveis.
Tanto o conceito de racismo de Estado e biopoder quanto o de tanatopolitica não encontram-se distantes da realidade brasileira, tendo sido na verdade acentuados após a ascensão do fascismo e conservadorismo nos últimos anos. Não é fato recente que jovens negros são os principais alvos do instrumento de manutenção das relações de dominação que é o sistema penal brasileiro. Como demonstra Infopen (Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias) de 2014, 67% da população carcerária no Brasil é composta por pessoas negras, número que caminha para o crescimento, haja vista os constantes projetos políticos que visam a criminalização dos corpos negros.
O ano de 2019 alcançou níveis exorbitantes no que se refere à morte de pessoas negras executadas pelas mãos do Estado. Só a Polícia Militar do Rio de Janeiro executou mais de 400 pessoas em confronto, maior número registrado desde 1998 (ISP). Os dados expostos evidenciam a adoção de mecanismos de violência letal para a proteção das vidas e interesses de quem de fato importa para o país: a burguesia que, composta majoritariamente pela branquitude, exerce em nossa sociedade o papel de soberano e agente de manutenção do racismo de Estado em prol da manutenção de seus privilégios.
Pensar acerca da violência aqui exposta requer entender que mais 400 homicídios em confronto dentro de três meses não são coincidência, que 80 tiros disparados contra uma família negra não são coincidência. Requer entender que esses dados e acontecimentos não são pontuais, pois o Estado age de maneira estratégica e intencional para proteger e vida de alguns e gerir a morte de outros.
Maria Luisa Lima Teixeira, 21 , é estudante de Psicologia, pesquisadora sobre violência e questões raciais no Núcleo de Pesquisa em Violência e Psicologia Jurídica (NUPEV – PJ) na Universidade Guarulhos. É coordenadora e colunista na revista virtual Clio Operária