A Mãe

A Mãe

Triste ver a mãe limpando a folha de papel fotográfico, a imagem do menino desbotando ao sol que entra pela janela da pequena casa de dois cômodos, indo dar na porta a dividir os ambientes, a imagem, abertura e fechamento em seu tamanho natural, tons róseos e alaranjados na queimação dos raios, a imagem, que a todos vem assustar, menos à ela, que não estranha aqueles olhos pedintes contornados pela cabeleira lisa, parecendo um cartaz promocional, dos que se usam em portas de loja em tempos de liquidação para chamar clientes, a imagem é um display, diz a vizinha, só que o menino não ri, e ela não se conforma, pois que o pariu, imagem, para que risse sob os olhos escuros, meteoritos apagando-se no ar, as maçãs protuberantes sob as olheiras fundas fazem o rosto e o silêncio, algo que ele não chama de mãe vem e olha bem de perto, a vizinha, sempre ao lado, não tem certeza de que ele não fala com ela, tampouco sabe o que ela sente, não se pode imaginar por que fica ali parada o dia todo e chama a todos para vê-lo, e os outros, por que não fogem da cena bizarra, dizem que é o único caminho pra chegar em casa no final da rua, é a pena que me dá dirá a vizinha que aos poucos deixa saber que toda tarde tenta convencer os outros a entrarem com ela, só Agnes não olha, bebe a água que havia no copo, logo sobe a ladeira com pressa, deixando um desprezo no ar pelo mover das pálpebras, acendendo um cigarro, dizendo de uma vez vou me embora, desenhando um risco de cumplicidade perdida junto com o cheiro da fumaça misturado ao perfume de sabonete de seu corpo forte, com o cheiro de café e vela de dentro da casa, se encontrando na porta com o olfato renitente de quem se acostumou ao odor dos porcos.

É aí que chego eu. Eu que crio os porcos e observo Agnes. Meus olhos já não aguentam ver sempre a mesma coisa. O cenário se refazendo ao sol que tudo desbota. Essa vela infindável acessa sobre o resto de sebo petrificado. Sempre fui sensível. Mais ao que se vê do que aos cheiros que agora me dão asco. O chão do quartinho, pista de patinação no branco da gordura. Tenho o lodo, os meus porcos, não preciso ver a mãe escorregando. As cortinas de voal sedoso pesadas na densidade da fuligem de anos. As paredes pintadas de prata. Tudo é sujo e, no entanto, ordem. A lâmpada do teto num lustre de vidro antigo, azulado, translúcido. O teto esfumaçado escondendo as moscas que no verão vem passar a noite camufladas entre as demais. Uma ou duas sobre os olhos do pequeno estigma. Ele me olha como um condenado que pedisse água. O copo na mesa ao lado está vazio. Foi Agnes. É dentro desse copo, sobre o qual jamais falei, nem ela, é nele que deixamos uma frustração que nos pertence. Ficava ali, boiando sobre a água sempre limpa, trocada a cada dia, a lucidez que permitiria pensar em coisas como falta, medo, absurdo. De vez em quando me levanto pra sair. Ela me pega pela mão com tanta força e me conta novamente sobre os anos passados entre as sombras, conversa de corredores vazios. O dia em que tentou se matar. Diz-me que era finta com o filho. Que eu nunca conte a ninguém o que sei. Que está só no mundo como um animal a ser extinto. Sem saída, volto à cadeira. Penso em Agnes. Segurando-me as mãos com medo de que eu fuja, repete o que já sei: quem não sobrevive à sombra é que nunca foi humano.


CONTO ORIGINALMENTE PUBLICADO NA REVISTA DA SOCIEDADE BRASILEIRA PARA O PROGRESSO DA CIÊNCIA. ANO 64 – NÚMERO 2. ABRIL, MAIO, JUNHO DE 2012. P. 68.

(6) Comentários

  1. Algo no conto me lembrou o Filme AntiCristo. Já assistiu? A mãe parece um tanto culpada. Esse cenário é angustiante de mais, essa coisa perpétua, sem renovação, essa dor fincada…

  2. Você sabe que isto é uma sinopse de um roteiro, não sabe? Liiiiiiiiiindo, profundo, dinâmico, cênico. Chega a ser tridimensional! Mergulhei na cena. Eu gosto desta cascata vertiginosa de imagens consistentes e perturbadoras. Amei as cores. Magnífico! Um bálsamo para mim depois de um dia repleto de dores no hospital. Obrigada!

  3. Obrigada! São dores que recrudescem dioturnamente, são meu objeto de trabalho como médica, assim, são dos outros e minhas ao mesmo tempo. Seus livros e textos são para mim ótimos remédios a qualquer momento. Bjs.

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