A literatura que vem do Nordeste

A literatura que vem do Nordeste
O autor Itamar Vieira Jr, autor de "Torto arado" (Todavia) (Foto: DIvulgação)

 

“Acredito que toda arte é local antes de ser regional, mas, se prestar, será contemporânea e universal. ” Assim afirmou um dos maiores nomes da cultura nordestina, Ariano Suassuna. Criador do Movimento Armorial nos anos 1970, o romancista, dramaturgo, ensaísta e professor tornou sua obra uma poderosa fonte discursiva de subjetivação e divulgação da arte contemporânea produzida no Nordeste.

A meu ver – como um curioso da literatura, e não um pesquisador – Suassuna é uma espécie de muro, uma base sólida que conseguiu equilibrar e elevar a cultura popular nordestina, que de um lado (para trás) tinha a literatura burguesa difundida por grupos minoritários que detinham o poder cultural por meio da ascensão financeira dos negócios com açúcar e cacau, e espelhavam os valores essenciais de uma nova classe social que, rapidamente, tornava-se hegemônica e reacionária, dissipando a cultura popular como algo atrasado e até vergonhoso.

Esta arte burguesa representava não apenas uma dileção ao nosso conservadorismo interno, ao nosso passado escravagista, mas também uma forma de submissão bem aceita aos modelos importados, considerados mais desenvolvidos.

Do outro lado do muro (para frente) estava o que Ariano chamou de “arte de quarta” ou “culto à mediocridade”. Ele se referia às criações ditas artísticas embaladas pela lógica capitalista que protagonizaram o surgimento da chamada “indústria do entretenimento” – muito mais atuante na música do que na própria literatura. Algo que, de alguma forma, com outro olhar, e por outros caminhos, também foi discutido em São Paulo, na Semana de Arte Moderna.

Mas enquanto Mário de Andrade, Oswald e companhia acreditavam que o Brasil, mesmo com suas dimensões continentais, poderia fortalecer a arte nacional com influências renovadoras que vinham do estrangeiro, Suassuna preferiu seguir outro manifesto, o Regionalista, proferido por Gilberto Freyre em 1926 durante o 1.º Congresso Regionalista do Nordeste.

Nele, o intelectual pernambucano defendeu que somente as tradições regionais seriam capazes de manter de pé a cultura do país, garantindo forças para absorver os impactos das inovações que não paravam de chegar de fora, sem descaracterizá-las. E justamente por ser o Brasil um país gigantesco, com muitas diferenças e influências culturais, Suassuna defendia a confiança no regional como caminho para a plena consolidação do nacional.

O crítico pernambucano Joel de Albuquerque Pontes Freitas, que conviveu com Gilberto Freyre e com Suassuna, fez uma interessante distinção entre o regionalismo dos anos 1930 e aquilo que chamou de “novo regionalismo”:

Não sou dos que julgam morto o regionalismo nem penso que venha a morrer ou tenha morrido em qualquer tempo ou país. O escritor se inscreve em realidades sociais e psicossociais, independente das influências de um pensamento coletivo e diretivo. Nesse sentido houve e há regionalistas. As histórias da Literatura estufam de exemplos. Em outras palavras, a partir do momento em que o escritor se acerca intimamente da realidade social que o atravessa, e a partir dela extrai a matéria-prima de sua criação, ele será um regionalista.

Visto dessa forma, este novo regionalismo transpõe a ideia de um grupo organizado ou de um movimento consciente para resgatar e valorizar a cultura regional, e incide no simples fato de o escritor partir da percepção de uma realidade social ou geográfica específica – o que antecede a frase de Ariano Suassuna de que toda arte é local antes de ser regional ,e se for boa, será universal.

Indiferente do “novo” ou do “velho” regionalismo, durante muito tempo – e talvez até os dias de hoje – convencionou-se chamar a literatura do Nordeste de “regionalista” pelo simples fato de ela ocupar uma posição periférica em relação ao eixo cultural do Sul e Sudeste, especificamente Rio de Janeiro e São Paulo, como se qualquer literatura que viesse de fora deste “centro” pudesse ser classificada dessa forma. Mesmo quando a arte vinha dessas regiões consideradas centrais, mas de outras realidades sociais, eram chamadas de literatura marginal, periférica, entre outras nomenclaturas. Mas segundo o professor Alexandre Barbalho:

Uma região não é uma delimitação natural, baseada em critérios objetivos fornecidos por uma geografia física, nem uma essência cultural definida pela geografia humana. Uma região é, antes, uma construção resultado de interesses – alguns convergentes, outros divergentes – e agentes diversos (sociólogos, geógrafos, etnólogos, economistas, políticos, artistas…) que disputam e/ou tecem alianças entre si para conquistar o poder de divisão de um espaço atribuindo-lhe identidade(s).

Recentemente, o escritor baiano Itamar Vieira Junior, autor do premiado Torto arado (Todavia) – já considerado um clássico contemporâneo brasileiro por alguns – disse em entrevista concedida ao Roda Viva, da TV Cultura:

A minha literatura não é regional, eu escrevo a partir do meu centro, eu penso a minha literatura a partir da centralidade das nossas vidas, o que está ali é a perspectiva das personagens, do autor, em um determinado cenário, mas ali estão questões e temas universais, como o direito à terra, o direito à vida, a liberdade, a violência, a política, que são temas que atravessam todas as sociedades e todas as culturas, não só no Brasil, mas no mundo. Essa preocupação também está na linguagem, no cuidado em não recriar ou mimetizar o dialeto do sertão baiano, ainda que eu preserve palavras e expressões usadas na região onde se passa a história.

Itamar faz isso como outros autores que, ao invés de expressões populares nordestinas, incorporaram gírias e expressões do tal “centro” sem nunca terem sido apontados como regionalistas.

Não é de hoje que muitos autores nordestinos se tornaram universais e ultrapassaram a “barreira do regionalismo” para ocupar um lugar de destaque – e merecimento – na abrangente literatura brasileira. Além do próprio Ariano Suassuna, Rachel de Queiroz, Graciliano Ramos, Jorge Amado, João Ubaldo Ribeiro são alguns exemplos dos que esticaram o  “centro” numa linha que vai do Rio Grande do Sul a Pernambuco, passando por Minas Gerais e Bahia, além de Rio e São Paulo.

Depois, nos anos 1990, surgiram no Nordeste escritores como Marcelino Freire, Xico Sá, Ronaldo Correia de Brito e outros nomes, muitos frequentadores das oficinas de Raimundo Carrero, escritor de Recife que, diferentemente do seu mestre Suassuna, não se fez muro, mas ponte: ponte entre o Recife antigo e o moderno, entre o Nordeste e o “centro”, entre o Nordeste e o mundo.

Agora, com a internet, essa linha se afrouxou, alargou-se ainda mais para o país todo. Como bem disse Itamar, não faz mais sentido classificar a literatura seja do Nordeste ou do Norte – de onde vem outro grande expoente da literatura brasileira atual, o manauara Milton Hatoum – como regionalista.

No último Prêmio Jabuti (2020), Cida Pedrosa, escritora pernambucana da pequena cidade de Bodocó, venceu não só a categoria de Poesia, como a de Livro do Ano, repetindo o feito de Mailson Furtado, da pequena cidade de Vajota, no interior do Ceará, que havia levado as duas condecorações em 2018. A última vez que um poeta premiado na categoria venceu também o prêmio de Livro do Ano foi em 2011, com o maranhense Ferreira Gullar.

Em 2020, Itamar Vieira Junior venceu o Jabuti na categoria romance, além de levar o Prêmio Oceanos e ter seu livro mencionado em todas as listas possíveis. Além destes, outros autores venceram grandes prêmios literários e ganharam reconhecimento e leitores nos últimos anos. A lista é enorme e cada vez mais eles estão presentes não só nas premiações e indicações, mas nas prateleiras das livrarias por todo o Brasil, conquistando leitores não só aqui, mas no mundo, como é o caso da escritora cearense Socorro Acioli, que já teve seus livros traduzidos para diversos idiomas.

Outro destaque importante é Jarid Arraes, mulher negra de apenas 30 anos nascida em Juazeiro do Norte, que além de milhares de leitores com o seu livro de contos Redemoinho em dia quente (Companhia das Letras), conquistou também o Prêmio APCA (Associação Paulista dos Críticos de Arte) e o Prêmio da Biblioteca Nacional. No Prêmio São Paulo de Literatura, nas 12 edições realizadas até agora, sete delas foram vencidas por autores nordestinos, entre eles Maria Valéria Rezende, Micheliny Verunschk, Estevão Azevedo, Franklin Carvalho.

E novos nomes não param de surgir, como é o caso de Raimundo Neto, nascido na pequena cidade de Batalha, no interior do Piauí, que conquistou o Prêmio Paraná de Literatura em 2018, foi finalista do Prêmio Sesc no mesmo ano e, em 2019, brilhou em uma palestra na Sorbonne, em Paris, durante a Primavera Literária. Ou Bruno Ribeiro, de Campina Grande, que neste ano abocanhou um prêmio de 100 mil reais em um concurso para livros de terror e suspense promovido por uma editora internacional, gênero no qual o Brasil nunca teve qualquer tradição.

Na última edição do Prêmio Maraã de Poesia, que promovemos na Editora Reformatório anualmente desde 2015, conhecemos os dois vencedores entre os mais de 370 inscritos de todo o Brasil. De onde eles eram? Marcel Vieira, de João Pessoa, e Pollyana Sousa, de Feira de Santana. Coincidência? Não.

Não é de hoje que não só na literatura, mas também na música, no cinema e nas artes em geral, o Nordeste tem nos mostrado grandes e excelentes produções culturais. Creio que a maior diversidade cultural do país está lá. Ao contrário de nós, do “antigo centro”, fechados em nós mesmos e presos às políticas vigentes no país, cada vez mais dependendo de fomentos e projetos culturais, deixamos um tanto de lado toda a riqueza de possibilidades das quais eles nunca abriram mão.

Hoje, o Nordeste é a melhor e mais rica região do país, senão em dinheiro, em todos os outros requisitos básicos para a produção cultural. Muito além da necessidade básica da camada mais pobre que o “centro” julga votar por cabrestos eleitorais, os intelectuais e produtores culturais nordestinos também votaram, na maior parte, em políticos mais à esquerda que, historicamente, se preocupam um pouco mais com a educação e a cultura. Não seria este um caminho ou uma linha de compreensão para pensarmos todo essa proeminência das artes nordestinas?

Marcelo Nocelli é escritor, editor e técnico gráfico. É sócio editor na Editora Reformatório. Autor dos romances O Espúrio e O corifeu assassino, ambos pela LCTE Editora, e do volume de contos Reminiscências (Reformatório).


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