A filosofia da experiência na aurora do século 20
O matemático e filósofo alemão Edmund Husserl, que estabeleceu a escola da fenomenologia (Reprodução)
A filosofia do século 20 tem na fenomenologia uma de suas principais expressões. O legado de Husserl espalha-se por diversos autores, entre os quais se destacam Heidegger, Merleau-Ponty e Sartre. Se fôssemos tentar definir o gesto teórico comum às diversas propostas desse campo, diríamos que a redescrição da experiência consciente ocupa lugar central no desenvolvimento das “fenomenologias”. Mais que isso, o retorno aos fenômenos e à sua descrição fiel parte sempre de um certo mal estar em relação à tradição filosófica, de uma constatação de limites e equívocos no tratamento dos dados da experiência. Se Husserl foi o pioneiro na boa formulação do diagnóstico sobre os impasses da filosofia moderna, definindo a tarefa da fenomenologia como o restabelecimento da verdadeira subjetividade (como Carlos Alberto R. de Moura nos mostra em seus ensaios sobre o autor), ele acaba por circunscrever a fenomenologia ao campo da teoria do conhecimento. Trata-se sempre de investigar os modos de doação de sentido tomados no registro de uma constituição dos objetos no conhecimento por uma subjetividade transcendental, fora do mundo. A busca do verdadeiro “subjetivo” e sua incompletude em Husserl é o que Merleau-Ponty problematiza, tratando de incorporar a herança do mestre ao levar às últimas consequências “o maior ensinamento da redução: a impossibilidade de uma redução completa”, segundo a famosa passagem do Prefácio à Fenomenologia da percepção.
A dimensão efetivamente existencial tem sua fórmula no “ser-no-mundo” de Heidegger: entra em questão a experiência efetiva dos sujeitos concretos em sua inserção no mundo. Torna-se evidente que a recuperação da descrição direta de nossa experiência é condição primordial de uma reflexão que se quer radical. Merleau-Ponty reconhece sobretudo que a relação concreta com os dados do mundo foi perdida pelo caminho da filosofia e os diversos sistemas conceituais foram incapazes de dar conta da experiência humana efetiva. A exploração do campo da existência exige assim que a análise filosófica se liberte de pressupostos que a contaminam, através da crítica ao pensamento que nada mais faz senão funcionar como obstáculo à análise existencial. Assim, ciência e filosofia entram na berlinda.
É importante notar, porém, que os temas da fenomenologia (e sua relação com um exame crítico dos limites da racionalidade científica e da filosofia que a ela se limita) já se deixavam adivinhar no século 19. Nesse contexto, destaca-se a tese de que o pensamento da modernidade opera sobre um fundo de pressupostos epistemológicos e metafísicos que agora se trata de trazer à luz e ultrapassar. E é precisamente na ampla crítica dirigida a uma certa herança do cartesianismo, especialmente de seu viés dualista assumido pelos herdeiros e adversários, que reside um conjunto de intenções e de tendências teóricas compartilhadas pela fenomenologia francesa e pela filosofia de Bergson. Para além das discordâncias explícitas e não menos relevantes, alguns estudiosos da obra de Merleau-Ponty, tal como é o caso de Renaud Barbaras, consideram fundamental que se leve em conta, para entender a radicalização que sua filosofia opera sobre o pensamento de Husserl, a influência exercida por Bergson.
Podemos destacar nesse âmbito a atitude propriamente crítica em cada um dos autores. Há, para eles, enraizada no saber, uma filosofia “natural” oriunda de processos de ação e sedimentada no conhecimento racional cujos pressupostos são noções que funcionam como uma espécie de motor invisível do pensamento. Entre essas idéias próprias ao pensamento intelectual ou à consciência reflexiva, encontramos a noção de “nada” ou “ausência” e sua suposta precedência à presença do real em nossa experiência, uma idéia tacitamente assumida pela tradição. Bergson e Merleau-Ponty entendem que a pergunta formulada pela história da metafísica é a que pressupõe a anterioridade do nada ao ser: “Por que há o Ser e não apenas o Nada?”. A ausência é o dado “originário” e o ser não pode ser tomado como presença plena: ele emerge de um fundo vazio.
A resposta a essa questão, eis o problema, constrói por si mesma uma ontologia que toma todos os entes à luz do ser determinado ou da “coisa”, segundo Merleau-Ponty, ou dos corpos dispostos no espaço ou espaciais, conforme a denúncia recorrente de Bergson. O ser lógico, intemporal e idêntico a si é o único cuja “realidade” pode vencer o nada que o assombra: ao assentimento à anterioridade do nada corresponde uma concepção do ser que o “isola” de qualquer contaminação de menos ser. Obviamente, a mudança e o movimento passam a configurar o problema metafísico por excelência, tal como a filosofia pré-socrática já evidencia. Ocorre que esse pressuposto passa a dirigir a reflexão filosófica em todos os campos, especialmente a meditação sobre o que se manifesta como dados da percepção sensível. A história da filosofia, mesmo em sua vertente empirista no século 17, impôs ao conteúdo da experiência consciente uma forma prévia e uma conceitualização que nada mais fizeram senão ocultá-lo, esquecendo o seu modo de ser mais primitivo, deformando-o e acabando assim por perdê-lo. Essa forma é sobretudo a da determinação, base da concepção do real através dos conceitos e juízos. Voltar às coisas mesmas, às articulações do real e ao verdadeiro sentido da experiência fielmente descrita é a tarefa que a fenomenologia decidiu realizar. Na sua versão merleau-pontyana, trata-se de recuperar a dimensão pré-lógica ou pré-predicativa da experiência, sua ambigüidade e sua indeterminação.
Tal intenção, eis o que importa notar, está presente na filosofia da duração, na medida em que ela pretende recuperar o valor dos dados imediatos da experiência sensível, justamente o que foi perdido pela metafísica tradicional. Para Bergson, a negação do tempo e do movimento que define a atitude teórica na história da filosofia tem uma exigência notável no que diz respeito à noção de experiência: o abandono do seu conteúdo imediato. Os sentidos nos oferecem diretamente a instabilidade, a mudança contínua e o movimento, aspectos do verdadeiro estofo do real que é, para ele, a duração. A filosofia conceitual acabou por redefinir esses aspectos como “aparência” a ser negada e ultrapassada. O “real” passa a ser descrito e encontra suas verdadeiras determinações “fora daquilo que nossos sentidos e nossa consciência percebem”, escreve Bergson em sua Introdução ao livro O pensamento e o movente. O sensível é desvalorizado em detrimento do intelectual, marca do platonismo cujos braços se estendem até a teoria do conhecimento moderna. Em suma, o desenvolvimento progressivo do pensamento aberto pelos gregos acaba por delimitar um lugar filosófico inferior para a experiência consciente. A substituição da “experiência movente e plena” por um “extrato fixo, dessecado, vazio, um sistema de idéias gerais abstratas”, nos diz Bergson ainda na mesma introdução, identifica-se ao ato de alijar a sensibilidade do campo da filosofia.
A aproximação entre os dois autores converge para um tema capital, a nova filosofia da percepção que nos oferece Merleau-Ponty. A gênese da percepção situa-se no corpo e na imbricação interna entre o corpo e o mundo – o ser que a fenomenologia desvelará em lugar do ser objetivo é o ser-no-mundo, diretamente inspirado em Heidegger. O estudo da percepção e do ser-no-mundo é também o desvendamento das condições da gênese do sentido, e ele exige o exame das filosofias de índole empirista e intelectualista. A crítica e a descrição bem articuladas possibilitam superar o divórcio entre essência e existência e absorver a faticidade no terreno da reflexão filosófica. Sem afastar os prejuízos das teorizações assumidas pelo saber corrente, não há como bem se aproximar do verdadeiro sentido da experiência.
Mais explicitamente, para encontrar a experiência do corpo como terreno pré-objetivo no qual se articulam sujeito e objeto, atividade e passividade ou consciência e natureza, Merleau-Ponty percorre um trajeto crítico dirigido às alternativas do pensamento clássico. Desmontando o tratamento dado por elas à percepção, ele identifica e recusa a uma só vez a explicação científica calcada no modelo do objeto e a análise reflexiva cujo mote seria o de um “retorno idealista à consciência”. Para o filósofo, as correntes “opostas” (empirismo e intelectualismo) padecem do mesmo mal: desvincular-se em princípio da aderência da consciência ao mundo. Nessa medida, uma fenomenologia da percepção, a que desvela a gênese do sentido, necessita superar obstáculos enraizados no saber, demolindo a certeza aparente de conceitos instituídos, para assim recuperar o vivido como dado de investigação. Portanto, a discussão crítica dos desdobramentos da escola empirista, nos anuncia Merleau-Ponty na sua longa introdução à Fenomenologia da percepção, pode fazer aparecer as características imediatas do sentir que haviam escapado e mesmo se esconderam por sob a noção de sensação. Esse momento constitui solo para a continuidade da obra.
No trabalho investigativo de Matéria e memória, a obra mais “fenomenológica” de Bergson, o ponto de partida para o amplo estudo da experiência consciente é também uma original teoria da percepção. E, precisamente como no caso de Merleau-Ponty, a experiência pode ser descrita com fidelidade no esteio de um trabalho crítico dirigido contra a tradição. Para Bergson, a especificidade da percepção concreta é inevitavelmente perdida se ela é pensada à luz das categorias próprias à teoria do conhecimento, tal como o fazem o realismo e o idealismo. Tratar a percepção como conhecimento, sem apreender sua origem como procedimento vital, identifica-se literalmente ao que Merleau-Ponty descreve, na Fenomenologia da percepção, como ação de “mutilá-la por baixo ao esquecer seu fundo existencial”. Em suma, Bergson pensa a percepção como processo vital e suas conseqüências como determinações de um mundo vivido pela consciência.
Essa primeira aproximação entre os dois projetos abre-se para outros processos analíticos que se imbricam: a relação com os dados empíricos da Psicologia e da Biologia, fazendo da noção de corpo-próprio a chave da teoria do conhecimento; a denúncia de pressupostos implícitos ao trabalho científico, que se põe a explicar quando deveria de início apenas descrever; a eleição do cartesianismo como origem dos impasses modernos, seja pela separação ontológica por ele efetivada (que deriva no paralelismo psicofísico), seja pela desqualificação do sensível ou do qualitativo como objeto de conhecimento verdadeiro, devido à sua incapacidade de se ajustar aos procedimentos matemáticos.
Há na verdade múltiplos entrecruzamentos entre os dois autores. É preciso, entretanto, lembrar que a longa introdução à Fenomenologia da percepção que abre o campo fenomenal termina por uma referência bem negativa à noção de interioridade do Ensaio sobre os dados imediatos da consciência de Bergson. Sem explorar essa dimensão, que também revelaria aspectos não menos importantes da inspiração bergsoniana presente em Merleau-Ponty, podemos apenas ressaltar a relação ambígua entre duas filosofias, pelo menos no que diz respeito à investigação da consciência. E precisamente por tal ambigüidade, essa relação configura um interessante ponto de partida para a inserção no espírito e na letra da filosofia merleau-pontyana, dado o estreito vínculo que aí se anuncia. Na verdade, ao longo das obras merleau-pontyanas efetiva-se um curioso movimento de reavaliações e retomadas da filosofia de Bergson, cujos desdobramentos configuram tópicos fundamentais à reflexão do século 20. Assim, o acompanhamento desse movimento sinuoso é extremamente fértil para a compreensão da paisagem filosófica contemporânea.
Débora Cristina Morato Pinto é professora de filosofia da UFSCar