A excepcionalidade do mal
Em Cadernos sobre o Mal, Joel Birman age como historiador de pequenas causas, fazendo a anatomia de um novo tipo de mal, circunscrito na sociedade brasileira
Christian Ingo Lenz Dunker
Há uma zona nebulosa do tempo entre o que ainda não se escreveu como história e o que não é mais parte do presente imediato. Essa nebulosa é a matéria dos ensaios de Joel Birman sobre a experiência da brasilidade entre 2000 e 2007. Lendo-os em retrospectiva, percebe-se como o passado recentíssimo pode ser estranho e surpreendente. Seja por exigência de ofício, por disposição de método ou por escolha ética, o que o conjunto dos ensaios revela é a invenção, no Brasil da cultura pós-inflacionária, de um novo tipo de economia da violência. Por dever de ofício, Birman, um psicanalista no horizonte da subjetividade de sua época, recupera tanto a teoria da agressividade em psicanálise, depurando-a de seu moralismo conservador, quanto os caminhos da constituição de uma criminologia psicanalítica, com base em Aichhorn, Winnicott e Lacan. Isso inclui gradualmente corpo, ato e outro, como categorias centrais de um novo estilo de subjetivação e uma nova forma de mal-estar. Para fazer juz à radicalidade da pulsão de morte freudiana, entram em curso os recursos críticos de método necessários para reposicionar o debate sobre a violência. Nietszche, Foucault, Derrida e Agamben lembram-nos a estreita e obscena relação entre violência e poder, e o caráter inócuo senão indesejável de pensar um sem o outro.
Quando a segregação se torna gramática invisível do poder, a violência ganha visibilidade como ruptura e invasão de fronteiras. Quando a violência simbólica é derrogada, quer pelo Estado, quer pela sociedade civil, ela retorna disseminada como violência real. Violência real intensificada, sob a forma de crueldade, no tratamento da vida nua e no esquecimento da vida qualificada. O diagnóstico é circunstanciado: a inefetividade do registro político diante do econômico e o esvaziamento da vida pelo registro da performance precarizam a subjetividade e bloqueiam estratégias de reconhecimento, como a hospitalidade e a ética da amizade, que funcionariam como moduladores simbólicos da violência.
A genealogia da violência, assim desenvolvida, consegue escapar da retórica legalista, que vê no declínio da autoridade vertical de tipo paterna a fonte da violência e, por isso, só consegue pensar formas regressivas de recomposição da autoridade. Escapa também da retórica naturalista, que cultiva o desamparo e a maternagem como aspiração reificada de solidariedade. Ou seja, depois da banalidade do mal, a excepcionalidade do mal.
Cultura pitbull e “sequestros relâmpagos”
Se na primeira parte dos Cadernos destacam-se as virtudes metódicas e teóricas de nosso autor, o returno do livro faz falar o cronista de uma época, o historiador das pequenas causas. São vidas simples, casos banais, contados com o que lhes falta, a saber, reconhecimento da dignidade. Por exemplo, a trajetória de um homem pobre que perde trabalho, esposa e família. Errante, mata cruelmente a menina que lhe oferece flores e comida. Violência inesperada contra a única pessoa que foi gentil com ele. Cinco anos de cárcere manicomial e escuta psicanalítica não foram suficientes para que ele, réu confesso e dócil, reconstruísse os rastros psíquicos dessa passagem ao ato criminal. Vazio e ausência de reconhecimento. Semelhança invertida com os soldados egressos do Iraque matando suas esposas… inexplicavelmente. Semelhança não simétrica entre vencidos e vencedores, como o grito de dor de As Troianas, tragédia de Eurípedes. Falsa equivalência que reaparece na crítica da ideia de que a guerra é a política feita por outros meios (tese de Clausewitz). O diagnóstico desconstrói as oposições fáceis dessa nova forma de violência: crueldade asséptica, crueldade excepcional, crueldade que não faz exemplos.
Não se trata apenas da banal identificação do criminoso com a exceção transgressora que funda a lei, mas da universalização da exceção em uma nova forma de lei. É o Império de um lado e Dogville de outro. Não é o futebol arte contra o futebol força, mas a permissividade dos árbitros universalizada pela corrupção dos cartolas; Maradona procurando a cura, mas não a salvação em Cuba; impactante retrospectiva política que nos apresenta página a página a gradual substituição do poder ostensivo e da violência visível, dos tempos de Antonio Carlos Magalhães, pelo poder invisível e pela violência excessiva, da era FHC e Lula; Estado burocratizado sem densidade afetiva e efetiva; o risco como valor ético básico (para o outro).
A cultura pitbull de nossos adolescentes, assim como a massificação das tatuagens, não tem mais de 15 anos. A aliança do PT com os evangélicos ou o oportunismo de Garotinho não têm mais de oito. A moda dos charutos Cohiba em Land Rovers turbinados não tem mais de quatro. Em seus pequenos ensaios, alguns tão breves que só podem vencer por nocaute, Joel descreve a emergência de um novo tipo de rico, e também de um novo tipo de pobre. Tipos sociais nos quais medo e desalento não se completam, assim como a depressão não se cura com a droga-dependência “excitativa”. Personagens dessa nova lógica de condomínio, que a um tempo sitia favelas e casas, privatizando a segurança de ambos.
Entre o miserável e o mendigo profissional, assim como entre o sequestro da filha de Silvio Santos e a popularização da prática dos “sequestros relâmpagos”, infiltra-se um elemento comum: a violência como demanda de reconhecimento e fama. Devolução ao remetente do gozo predatório de nossas elites. Não há, portanto, nenhuma banalidade aqui, mas desejo desesperado de engendrar uma excepcionalidade. Cadernos do Mal é um retrato em movimento da longa trajetória de reflexão de Joel Birman sobre os destinos da modernidade. Deve ser lido, com Arquivos do Mal-Estar e da Resistência (2006), como verdadeiro desafio à nossa capacidade de imaginação política e invenção psicanalítica. Se a ideologia é eterna, como disse Althusser, nosso passado recente não é.