A escrita circunscrita de Saer

A escrita circunscrita de Saer

Autor argentino, que tem o romance As nuvens lançado no Brasil, fez do rigor e do radicalismo as marcas de seu diálogo com a tradição literária 

Julián Fuks

Não cabe à literatura dizer se toda vitória traz consigo o germe da derrota vindoura, se todo apogeu é sucedido por uma queda inevitável, mas o caso é que sua história parece se esmerar em demonstrá-lo. Nos grandes poemas épicos da Antiguidade prenunciava-se o gênero que tomaria seu lugar milênios mais tarde, e o estabelecimento hegemônico do romance como expressão da modernidade guardava em seus interditos a fúria das vanguardas que viriam a torná-lo alvo: Proust em sua intenção de esgotá-lo, Joyce desconstruindo-o, Beckett sem mais pudor tratando de destruí-lo. Ainda hoje aplaudimos as obras extremas que derivaram da sanha desses homens, mas daquelas vanguardas pode ter decorrido a pior derrota: as liberdades foram tomadas, já não há recipientes a serem transbordados, moldes a serem rompidos, e só o que parece nos restar é a vida inenarrável.

Desmemoriados ou cínicos, talvez para não perder os rendimentos já tão módicos, os escritores têm preferido ignorar o impasse. Editoras e livrarias efervescem de romances novos, que contam em variações infinitas as mesmas histórias, aventuras, amores, de um tempo de dor e de glória. Ano a ano esses livros superlotam as estantes, ocupam as mãos de consumidores cujos bolsos são mais ávidos que os olhos, concorrem a uns tantos prêmios literários – e tantas vezes os vencem. Prendem a atenção dos leitores recorrendo a estratégias velhas, emoções, mistérios, fazendo-os esquecer a crise e os problemas pregressos e girando o mecanismo próspero e indefectível das ingenuidades.

À sombra da grande máquina, no entanto, trabalham outros, rigorosos em sua técnica e inflexíveis em seus princípios, e é de um desses homens abnegados que fala este texto de extenso prólogo.

Uma vida à margem

Por mais de 20 anos, a partir de 1960, o argentino Juan José Saer (1937-2005) escreveu em silêncio. Páginas e mais páginas de dez livros que, em tiragem mesquinha, passavam ao largo do boom latino-americano e chegavam apenas às mãos de seus amigos mais próximos. Não eram obras de aprendizado, diga-se logo: desde suas primeiras incursões literárias, em romances como Responso e Cicatrices, revelavam-se o domínio de linguagem e o ímpeto anticonvencional que se aliariam para alcançar o paroxismo ainda nessa fase incógnita, com o conto “La mayor” e os romances El limonero real e Ninguém nada nunca – entre os dez primeiros, o único publicado no Brasil.

Valendo-se de uma sintaxe cada vez mais intrincada e acurada em sua técnica, de um rol de imagens poéticas pelo que têm de ordinárias e concretas, o que Saer fez nessas obras foi afogar o leitor em uma extrema minúcia das descrições, no desmantelo de cada ação e de cada gesto. Era como se quisesse deter o tempo e captar o instante em seu caráter múltiplo e ínfimo, de modo que seus livros são o resultado desse embate constante contra a transitoriedade. Como seria de se esperar no império das leituras fáceis, sua obstinação foi relegada pelo mercado. Se Ninguém nada nunca pôde render a seu autor uma fama remota e discreta, entre aficionados e especialistas, foi mais por seu conteúdo político que refere de modo direto a ditadura argentina do que pelo radicalismo que o caracteriza.

Depois vieram seus romances mais sardônicos, seus diálogos cifrados com a tradição literária que sempre mascaram a disposição de transtorná-la. Nessa linha inserem-se A pesquisa, A ocasião e o extraordinário O enteado, uma obra que emula os procedimentos altivos das narrativas históricas apenas para revelar a natureza evanescente do tempo, da representação, da existência, da memória. Assim é também o romance As nuvens, a última de suas obras acabadas e a mais recente publicada pela Companhia das Letras. Remonta a 1804 e conta a história de uma travessia pela planície desértica a caminho de Buenos Aires, mas, ninguém se engane, justifica com pertinácia o contexto porventura antiquado: “O que percebemos como verdadeiro do passado não é a história, mas nosso próprio presente, que se projeta e olha para si mesmo no exterior”.

As nuvens ainda acrescenta uma nova temática ao repertório de Saer: a loucura. O percurso narrado corresponde ao traslado de cinco pacientes a um hospital psiquiátrico, e ao longo dele não faltarão demonstrações histriônicas de perversão, mania, descontrole. Gradual e sorrateira, entretanto, não se demora a perceber a ambivalência entre a razão consumada e tais conceitos, “como se lógica e loucura chegassem por caminhos diferentes aos mesmos símbolos”. Às mentes supostamente normais o narrador reserva uma definição que muito se aplica ao cinismo da maioria dos escritores da atualidade: “Não havia problemas porque a simples vista se advertia que de todo modo não haveria solução”.

A necessidade de limitar-se

Mas o que está na base desse radicalismo tão amplo e variado, dessas obras que engendram entre si um extenso discurso e em que inclusive os enredos se entrelaçam? Há algo mais, além do fato de que “o todo contém a parte, a parte, por sua vez, contém o todo”, como quer Saer.

Há um universo inteiro construído com suma consciência dos limites que o passado impõe à construção literária. Uma série de livros que se sabem indefesos diante da arbitrariedade que se abateu sobre a linguagem, e sabem que serão inócuos se não conseguirem legitimar-se. É pelo rigor de preceitos e circunscrições que Saer dá pertinência a cada uma de suas obras, e assim fundamenta seu narrar em tempos tão improváveis. Mas sabe, também ele, que não triunfa em nada. Se tenta deter o tempo e captar o instante é pelo direito à falha, pelo direito a mostrar o quanto é inapreensível a realidade. Se tenta recriar o passado é para dar a ver sua inexistência, a imaterialidade da memória. Se tenta transmitir uma experiência própria ou alheia, é para constatar que qualquer experiência é inassimilável, e que a tentativa de narrá-la só poderá revelar uma poderosa, ubíqua impossibilidade.

As nuvens
Juan José Saer
Trad.: Heloisa Jahn
Ed. Companhia das Letras
192 págs.
R$ 40,50

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