A cor do ciúme

A cor do ciúme

Sobre imagens de movimento intenso e da vida tumultuada, caótica, de Roma; entram os créditos.

 

Uma rua de Roma. Fim do dia. No farol, um homem está imóvel em seu carro. Ele bate os dedos sobre o banco ao lado do motorista. Está muito impaciente. Confere seu relógio. Ao seu lado há apenas táxis amarelos. Nos táxis, todos os tipos de pessoas: um homem, calmo, que espera pacientemente, um outro que lê o jornal, um gordo que parece não encontrar descanso e muda sempre de posição, um que ri sozinho, um outro que fala com uma mulher, provocando nela risos breves e contínuos, que se interrompem repentinamente; uma outra muito nervosa, que fuma, aspira profundamente a ponto de consumir metade do cigarro a cada baforada etc. Os motoristas dos táxis têm uma aparência triste, têm todos os mesmos gestos.

(…)

Uma outra rua de Roma. Essa rua, como a anterior, se parece com um desenho inacabado, de uma tonalidade uniforme: bege. Sobre esse desenho são inseridos, de  vez em quando, episódios realistas, típicos de uma rua, todas as cores também realistas: as silhuetas que gesticulam enquanto caminham ou sentadas nas mesas na calçada, em um café. Ainda em um café, sentado, um velho se torna enorme porque está enquadrado no olhar de um homem impaciente. Um carro passa na rua com seu barulho ensurdecedor: ele está cheio de turistas e seus risos se perdem em um eco distante.

Matteo – esse é o nome do homem – lança mais uma vez um olhar sobre seu relógio. Isso enquanto guia de maneira audaciosa, mas ainda com calma. Na verdade, trata-se de uma personalidade calma, quase 35 anos, os cabelos um pouco longos, nos quais, de quando em quando, ele passa os dedos.

(…)

O rosto de Yvonne sobre um fundo rosa. Esse fundo é como a parede do cômodo, ligado a um móvel que será visto mais tarde, característico da casa. Ela fala ao telefone.

Voz de Matteo – Se você acredita que pode me vencer…

Yvonne – E se você acredita ser imbatível… Você não sabe fazer o lift, seu smash não é muito bom… o smash… você não sabe fazer o smash. Se você tiver um adversário que sabe jogar, como Gigo, não fará nenhum ponto.

Voz de Matteo – Gigo?

Yvonne – Sim, Arrigo.

 (…)

O rosto de Matteo parece concentrado em um único pensamento.

Voz de Matteo –  O que Yvonne pode estar fazendo neste momento? Ela sonha com o quê? Se ela tem realmente a intenção de ligar para Arrigo… Ou tudo foi apenas uma ameaça, dita assim? E se ela falava a verdade, fez isso em seguida, depois de nossa conversa ao telefone ou ela preferiu pensar um pouco, antes de tomar uma decisão? Se ela telefonou para ele, certamente ele partiu para Pescara em seu carro. Ele está então na estrada. Cada carro que passa pode ser o dele, ou cada um daqueles que ultrapasso, talvez seja esse sujeito…

Enquanto isso acontece, ouvimos Yvonne falar com Arrigo ao telefone. Ela está nua, acaba de sair do banho, uma toalha em sua mão.

Ele, satisfeito, ela, ainda distante, mas determinada. Não ouvimos suas palavras, que são cobertas pela voz de Matteo, mas é evidente que a jovem convidou o homem para uma visita. Logo depois de desligar, Arrigo apanha um casaco – ele se veste de  maneira bem original, esse Arrigo. Ele sai de seu escritório e entra no carro.

O carro que esta à frente de Matteo não vai muito rápido, ultrapassá-lo é fácil. A pessoa que o conduz não está, evidentemente, apressada.

(…)

Matteo, irritado, os observa. Yvonne, se lembrando que ele está lá, se volta.

Yvonne – Venha, vamos jogar, eu e você.

Matteo não se mexe. Arrigo sai de seu lugar e, passando diante de Matteo, lhe dá a raquete. Mas antes de sair, ele pergunta a Yvonne

Arrigo – Como ele joga?

Yvonne – Como explicar… ele é muito
violento… muito…

Arrigo – Como os húngaros… Alías, você tem algo um pouco húngaro, Matteo…

Ele se afasta, parando no corredor para falar com uma mulher, a quem  abraça, envolvendo seu pescoço com seus braços. O vemos rir, depois desaparecer. Yvonne se aproxima de Matteo.

Matteo – Não tenho nenhuma vontade de jogar.

 (…)

Matteo – Por que você começou enquanto eu estava no quarto?

A jovem está realmente espantada.

Yvonne – Meu Deus… Eu não deveria?

Matteo – Não, você deveria ter me esperado.

Yvonne – Matteo, por que você não toma um banho?

Matteo – Não estou com vontade de tomar um banho, eu quero jogar pingue-pongue.

Yvonne – Antes, era não; agora, sim. Comigo ou com Arrigo?

Agora é a vez de Matteo de se surpreender.

Matteo – E por que Arrigo está aqui? Por que eu deveria jogar com ele?

Yvonne – Por jogar, para ficar em forma.

Matteo – O que você quer dizer com isso? Que eu não estou mais à altura, depois que você passou a ter aulas com ele?

Yvonne são responde. Ela está com uma expressão que quer dizer: deixa pra lá, Matteo, pára. Na estante, na parede, há um livro; Matteo o apanha, como se acariciasse.

Voz de Matteo –  Tudo é ainda mais incerto, mas eu me sinto mais calmo. Espero uma certa tranqüilidade. Enquanto pudermos checar os números de telefone, nos quais ninguém responde, continuaremos, os três, a seguir em uma direção, e depois em outra, como marionetes, manipuladas por fios… Eu não sei por que me sinto mais calmo. Não há razão para isso. É simplesmente idiota continuar assim, o amor é uma ilusão. Não, não é uma ilusão. Mas também não é essa coisa formidável… Em resumo, é preciso participar das coisas. Se o nariz de Cleópatra tivesse sido um pouco mais longo… Todos os revolucionários, começando com Che, tiveram uma mulher ao seu lado… Talvez as deixassem na sombra, em um canto, as usando como medicamento, entre as refeições… O que diriam disso as feministas?

As linhas brancas sobre o asfalto.

Voz de Matteo –  …Sem ponto de chegada
ou partida.

O carro de Matteo avança em velocidade moderada em direção a Roma. Outros carros passam, o tráfego habitual das estradas, ruidoso de maneira intermitente. Os faróis, ainda iluminados, se alteram menos na luz do dia que nasce. É possível notar a paisagem ao redor, seu desenho ao menos, as massas, os volumes. A rádio toca o “Prelúdio número 8”, de Bach. Matteo guia com calma. A cada carro que quer lhe ultrapassar, fazendo sinais com os faróis, ele responde com outros sinais, ele participa desse diálogo, que diz respeito apenas aos carros, às ultrapassagens, nada mais. Seus traços são marcados, sua expressão é serena, mas um observador atento poderia ler nela um desarranjo. Ele retornou a um mundo onde os carros são carros e os postes de luz, luz, que se confunde com o amanhecer. Não são mais sinais dos apaixonados, essas mensagens de código acessível unicamente a quem ama, os que são capazes de os receber e os entender.

Trecho de Il colore della gelosia, roteiro escrito em 1971por Michelangelo Antonioni.
Nunca filmado.

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