A “boa genética” e o racismo silencioso de nosso cotidiano
(Arte Revista CULT)
Por André Carreira
Santo Ângelo, Rio Grande do Sul, 1952
Uma família de negros entra em uma barbearia. O barbeiro, branco e dono do estabelecimento, os atende. Visivelmente nervoso e pouco amistoso, ele comete uma série de erros nos cortes de cabelo, provocando falhas e machucados nas orelhas dos clientes. O filho do barbeiro, surpreso com a situação, pergunta ao pai a razão de seu nervosismo e de seus erros, até então inéditos para o menino de 12 anos. O pai então responde: era proposital.
A lógica era, em sua ótica, simples: se os clientes – independente de raça – ficassem satisfeitos com o serviço, voltariam ao estabelecimento. Como a maior parte da clientela era branca – e de maior poder aquisitivo – e muitos deles se sentiriam incomodados em dividir espaço com clientes negros, era preciso afastar, e não se negar a atender, essa parcela indesejável da clientela. Com o péssimo serviço, nunca mais voltariam e tudo voltaria à normalidade.
Santos, São Paulo, 2015
Em um restaurante da cidade – como em tantos outros – clientes brancos são atendidos por funcionários negros. Em uma das mesas, uma família de brancos jantava tranquilamente. Pai, mãe e uma pequena criança de pouco mais de um ano, dormindo placidamente. O sono, no entanto, durou pouco. Acordada, a agitada criança queria, de todas as formas, a liberdade das amarras de seu carrinho. Enfim livre, o pequeno começa a correr por entre as mesas sob os olhares sempre simpáticos de garçons e garçonetes. Em um dado momento, dois deles iniciam uma conversa. A garçonete, negra, elogia a beleza da criança, branca, ao seu companheiro de trabalho, também negro.
“Olha que lindo, tão branquinho e loirinho”, diz ela. Ele assente com a cabeça positivamente. Na sequência, ela conclui: “Genética boa, não?”. O funcionário faz, novamente, um sinal positivo com a cabeça, sorri, e deixa o local após ser chamado por um dos donos do restaurante (branco, obviamente).
Sessenta e três anos separam os dois casos relatados acima.
O primeiro é contado pelo já falecido jornalista e professor universitário Fausto Wolff em seu romance autobiográfico À mão esquerda, publicado em meados da década de 1990. Fausto tinha, em 1952, 12 anos de idade e era filho do barbeiro da pequena cidade gaúcha. Segundo ele, o pai jurava com todas as forças não ser racista, indicando que seu comportamento era justificado apenas pela necessidade de sobrevivência de uma família dependente de um estabelecimento comercial.
O segundo caso, bem mais recente, aconteceu comigo. A criança em questão, branquinha, loirinha e de “boa genética” é meu filho Pedro, hoje com cinco anos de idade.
Mesmo acostumado ao país da igualdade jurídica e da desigualdade de fato, confesso ter sentido uma mistura de tristeza e constrangimento ao contar o episódio à minha esposa. Ao vermos nosso menino correndo pela casa, pensamos em todas as facilidades que ele terá simplesmente por ser um menino branco de classe média, de olhos e cabelos claros. Pensamos nos olhares desconfiados que ele não suscitará, na blitz policial que não o abordará, nas orelhas que o barbeiro não cortará, nas entrevistas de emprego, enfim, nas portas abertas automaticamente por ele ser, fisicamente, o que é e por, em sua branquitude, possuir aquilo que Luiz Antonio Simas denominou brilhantemente de “proteção da cor da pele”.
Nas esferas cotidianas do micro-poder, a discriminação é sutil, mas opera violentamente. O olhar, o comentário baixinho ao pé do ouvido ao ver a pessoa passar, o atravessar a rua na calada da noite. Nos preconceitos mudos e subterrâneos de nosso dia-a-dia internalizamos comportamentos e delimitamos posições.
O Brasil, como tantos outros, é um país de preconceitos. De gênero, classe, origem, cor de pele (ou raça), orientação sexual. Determinadas pessoas caminham, diariamente, com um “porém” ao seu lado. O sujeito é “honesto, apesar de ser pobre”. É “inteligente, apesar de ser negro”. É legal, “mesmo sendo gay”. É competente, “embora seja mulher”.
Com o passar dos anos, diversas campanhas educativas, leis e regras de convivência foram criadas para tentar inibir o preconceito em nosso país. Ainda assim, a exclusividade de acesso a certos espaços (inclusive públicos) indica que apenas o discurso foi atingido, quando muito. Chamar alguém de “macaco” ou “preto” em público pega mal, cria constrangimento e pode até (embora seja difícil) trazer problemas com a lei (basta lembrar que racismo é crime inafiançável). No entanto, discursos mais moderados – pouco usuais nos dias de hoje – não eliminam certas práticas ou idéias pré-concebidas.
A herança escravista é uma ferida aberta em um país que insiste em acreditar no mito da democracia racial, mas em que pouquíssimos ocupam a Casa-Grande. Em um país em que brancos e negros cometem os mesmos crimes, mas alguns lotam as prisões e outros lotam as universidades.
No país da “miscigenação cordial”, alguns servem, outros são servidos. Alguns possuem a genética “boa”, outros nem tanto.
Escrevo essas linhas observando meu menino, loirinho e branquinho como o menino que fui um dia. Observo e projeto no menino o adolescente e o adulto que ele será. Observo e penso em meu papel como pai em uma conjuntura como a atual, marcada pela naturalização do absurdo e pela negação dos mais básicos pilares civilizatórios. Observo e reflito sobre como posso contribuir para que ele cresça respeitando a todos, independente de classe, gênero, religião, origem, orientação sexual ou cor de pele.
Difícil. Não existe fórmula ou mágica.
Existe exemplo, presença, conversa, reflexão, ação.
Exige esforço, trabalho, luta.
Luta diária, incessante, pela construção de uma sociedade mais tolerante e menos injusta.
André Carreira, 38, é professor, pai do Pedro, em Santos/SP