Não me chames de estrangeiro
Em pleno período da ditadura no Brasil, um grupo musical se destacou por suas letras sensíveis a problemas sociais que correm pelas “veias abertas da América Latina”, como diria Eduardo Galeano. O nome da banda, em espanhol, “Raíces de América”, mas com canções em português já deixava claro que a integração entre nosso país e seus vizinhos era também uma das suas reivindicações através da arte. Em Fruto do suor, música que ficou em 2º lugar no Festival MPB Shell, em 1982, dois trechos em particular convidavam à reflexão:
“O interesse fabricou carimbos
O ódio à toa levantou paredes
A baioneta desenhou fronteiras
A estupidez nos separou em bandeiras
[…]
Tenho um filho nessa terra
Foi um amor sem passaportes
Se o gestar foi brasileiro
Não me chames de estrangeiro”
Porém, a problemática do nativo e do forasteiro num perímetro territorial a ser compartilhado não se limita a essa fase e tampouco ao nosso país (também internamente, entre estados e regiões, lamentavelmente). Recentemente, Portugal aprovou a nova Lei dos Estrangeiros, em meio a crescentes manifestações de ódio a brasileiros e cidadãos de outras nacionalidades. Igualmente, desde 2014, discursos nacionalistas radicais têm conquistado adeptos em países desenvolvidos e em desenvolvimento, das nações do bloco europeu à virulência contra o povo Rohingya, de Mianmar, no sudeste asiático. Esse não é um sintoma de um tempo, mas, aparentemente, uma construção histórica que nos acompanha desde os primórdios da civilização, especialmente após nosso estabelecimento como espécie sedentária.
Mas de onde provém o incômodo com o outro que se apresenta em nossa “casa” e decide, por diversas razões, habitá-la, muitas vezes contra a nossa vontade? E o que essa recusa significa?
Dois conceitos se retroalimentam nessa dinâmica. O primeiro deles é o sentido de propriedade, administrada por poderes que intervêm e controlam variáveis, as quais, para eles, funcionam como um recurso, como é o caso da população e sua idiossincrasia. Como afirma Claude Raffestin em Por uma geografia do poder (Ática, 1993, tradução de Maria Cecília França), a maleabilidade da população para o Estado é medida pela correlação entre heterogeneidade e homogeneidade, sendo a segunda categoria, a que mais convém. Para a sobrevivência de estruturas hegemônicas e de sua linguagem de autoridade, é necessário unificar, tornar a massa uniforme (sim, como um bolo ou pão que se prepara para comer), afastando signos de diferenciação, dissidência ou destaque. Como as instâncias domesticam as forças sociais, sua ação se expande do campo das organizações governamentais às células sociais mais básicas, inclusive as famílias.
Através da canalização de discursos, o estrangeiro se torna o intruso que pode subverter a ordem estabelecida, causando caos, portanto, deve ser “eliminado” de alguma forma para afastar a entropia e voltar à “harmonização organizacional”. Essa eliminação pode se dar em nível simbólico, com a exclusão sistemática de atividades comunitárias, entretenimento e até processos decisórios essenciais, por exemplo, o voto e outros direitos semelhantes concedidos a cidadãos nativos.
O segundo conceito que alimenta bairrismos e xenofobias é o espaço físico, não per se, mas como é constituído por meio de movimentos históricos, políticos, religiosos e culturais que não se desvencilham uns dos outros. Uma engrenagem bem lubrificada que fatia o espaço territorial e o divide em periferias e centros. Pensemos no “caracol” parisiense: no século XIX, as as indústrias se instalaram com suas máquinas e fuligem nos distritos (arrondissements) 18, 19 e 20, a leste da cidade, protegendo a burguesia da fumaça e do visual nada haussmaniano dos operários, muitos deles de países vizinhos ou africanos. Assim vão se formando as banlieues excluídas do cenário romantizado da bela Paris, inclusive na era contemporânea.
O espaço social e relacional ganha um significado mais profundo, atuando diretamente na mentalidade dos atores sociais envolvidos. Entre burgueses perfumados e operários com o rosto marcado pela fumaça das máquinas a carvão, compõe-se também a multidimensionalidade do território, marcado por divergências não apenas econômicas, mas culturais. Em outras palavras, passa-se a viver “o produto territorial” que permeia os estratos e direciona mentalidades em direção a uma supremacia ou sentimento de deslocamento e não pertencimento.
É o que ocorre hoje com brasileiros em Portugal, como um dia aconteceu com os metecos na Grécia Antiga, e com nordestinos em São Paulo no século XX, e atualmente na região sul, que em seu delírio se considera puramente europeia e “mais avançada”.
Julia Kristeva, questiona se o estrangeiro “inimigo” das sociedades arcaicas passaria a ser visto de outra forma numa sociedade tecnológica. O capítulo Tocata e fuga para o estrangeiro, da obra Estrangeiros para nós mesmos (Rocco, 1994, tradução de Maria Carlota Carvalho Gomes), desenvolve essa análise. Mas é necessário considerar a data em que foi escrita: 1988. Estávamos às vésperas da queda do muro de Berlim e da consolidação definitiva de blocos econômicos como a União Europeia. Havia a esperança de uma integração fluida, da formação de uma “grande aldeia global” em que fronteiras e territórios seriam meros marcos do passado.
Após o 11/09, nos Estados Unidos, novas narrativas se desenvolveram e qualquer sonho de entendimento e integração se esfacelou. A violência do discurso contra o que é alheio, tem sotaque e costumes diferentes provém de uma crise civilizatória, alimentada por concepções morais, religiosas e políticas equivocadas, habilmente disseminadas pelas instâncias superiores.
O estrangeiro passa a ser o responsável pelos males das cidades e países, figura insondável que vem ocupar o que supostamente não lhe é de direito. Nesse cenário de estrangeiros, que se dividem em imigrantes, exilados, refugiados, expatriados, seu status na sociedade em que eventualmente podem ser aceitos varia de acordo com o lugar de origem e sua condição de estrangeiridade.
No jogo de espelhos, cabe colocar agora a perspectiva do forasteiro que chega: o paradoxo infindável que olhar para trás, para os próprios pés onde caminha e tentar vislumbrar um futuro de retorno ou de eterno desgarro. Como o rapper Pinkwalla canta em Os versos satânicos de Salman Rushdie (Companhia das Letras, 1998, tradução de Misael Dursan): “Hoje eu sinto indignação quando falam de imigração quando fazem insinuação que a gente não é parte da nação e eu faço proclamação da real situação damos nossa contribuição”.
Sim, as contribuições são óbvias e manifestas, mas frequentemente insuficientes para o “habitar com o outro”. Tanto que um outdoor em Liverpool, exposto no último outubro, deixava isso claro: a figura magistral de Freddie Mercury num palco, e uma frase abaixo que dizia Thank God for immigrants (“Graças a Deus pelos imigrantes”). A imagem é admirada por dois rapazes ruivos, talvez repensando conceitos.
Devemos estar cientes de que todos somos estrangeiros, desde o exílio adâmico. E também todos somos nativos, afinal, as fronteiras são roteiros imaginários que se desfazem quando percebemos lucidamente nossa transitoriedade e nosso sonho pueril de apropriação.
Dirce Waltrick do Amarante é tradutora e ensaísta. Autora, entre outros, de Metáforas da Tradução (Iluminuras). Professora da Universidade Federal de Santa Catarina.
Fedra Rodríguez é tradutora, neurocientista e ensaísta. Traduziu, entre outros, Raymond Roussel, James Joyce e Juan-Eduardo Cirlot.





