Elogio do Plágio
Aqueles que insinuaram que Menard dedicou sua vida a escrever um Quixote contemporâneo caluniam sua límpida memória. Não queria compor outro Quixote – o que é fácil – mas o Quixote. Inútil acrescentar que nunca enfrentou uma transcrição mecânica do original; não se propunha copiá-lo. Sua admirável ambição era produzir algumas páginas que coincidissem – palavra por palavra e linha por linha – com as de Miguel de Cervantes.
Jorge Luís Borges – Pierre Menard, Autor do Quixote.
Um consenso parece reunir de maneira quase universal os criadores originais, grandes e pequenos, das mais distintas artes e ofícios: o ódio aos plagiadores e sua cópia barata. Nem mesmo os mais sofisticados debates acadêmicos sobre o caráter problemático do conceito de autor – múltiplas vozes falam dentro de nós e, muita vezes, o trabalho creditado a apenas um foi elaborado muitos – e as questões implicadas pela reprodutibilidade técnica da obra de arte e os usos de processos digitais para a produção de imagem, visíveis nos principais museus de Nova York, São Paulo ou Paris, serviram para redimir os artífices da cópia descarada. O seu texto, quadro, música ou experimento é marcado de uma vez por todas com a marca da inautenticidade, do falso, do ilegal, e, no fundo, também do imoral.
Não sou leigo nas teses e dissertações sobre a “originalidade da cópia” e o “valor das réplicas”. Digo apenas que ao cidadão de cultura média, uma linha clara divide, por exemplo, as reproduções fotográficas de um Andy Warhol e a baita sacanagem da cantora londrina Adele que sem qualquer cerimônia surrupiou os arranjos da canção “Mulheres” dos grandes sambistas Martinho da Vila e Toninho Geraes sem pagar um centavo. Warhol é um gênio. Seu trabalho mudou nosso modo de enxergar o mundo. Adele… não vale o comentário.
É verdade que existe o plágio involuntário que pode acontecer a qualquer pessoa demasiado enfronhada num conjunto específico de referências ou por simples golpe de memória, porém, me refiro aqui ao gesto deliberado de chamar de sua uma obra que é de terceiros. Nesse sentido, desejo sublinhar o aspecto moral e, por vezes, político, do problema.
Disputas dessa natureza podem envolver bem mais do que rusgas entre plagiados e plagiadores, criadores e falsários. Por vezes, o orgulho de todo um povo pode estar imerso na questão de quem fez o quê, se antes ou depois, em primeiro ou segundo lugar. Lembro que meu avô não aceitava a ideia de que outro, além do nosso Santos Dumont, pudesse ser apontado como o inventor do avião. Era um crime de lesa-pátria. Ferroviário e socialista, achava toda essa conversa do pioneirismo dos irmãos Wright na aviação coisa do mais deslavado imperialismo capitalista norte-americano.
Uma outra observação importante sobre a repugnância moral que os plagiadores e falsários atraem sobre si, em especial, por aqueles que tomam a criatividade como valor intelectual e artístico é que, em grande parte das vezes, o mais ralo dos copiões é um desertor, alguém que poderia fazer algo verdadeiramente novo e revolucionário, mas simplesmente desistiu, pela ganância do dinheiro fácil ou pelo atalho do reconhecimento sem qualquer esforço. Não é uma pessoa sem talento ou imaginação como supõe o senso comum sobre o tema. E isso é ainda mais irritante. Por quê, se você é capaz de copiar com perfeição, utilizando apenas tintas e pincéis, o quadro de uma Frida Kahlo ou de um Basquiat, afinal de contas, o que lhe fez desistir de lutar por um lugar ao sol entre os imortais? A inexistência de uma resposta clara a essa pergunta é o que torna esse debate inequivocamente moral e, como disse, até mesmo político.
E devo confessar que a despeito de apreciar os trabalhos de crítica literária sobre como a cópia pode ser melhor que o original e etcetera… certo moralismo sempre contaminou meu juízo neste assunto. Não é fácil declarar aqui tamanha parcialidade, mas a verdade é que por toda minha vida, tomei os plagiários e falsários como os seres mais baixos e mesquinhos da escala intelectual da humanidade e, suas obras, como feitas de pura deslealdade com a razão e mentira para com os sentidos. Tive-os na conta de gente ruim mesmo, contra o progresso do pensamento, destruidores da verdadeira ciência, adversários da beleza, corruptores da fruição artística e enganadores do espírito. Numa frase: classificava o plagiário como traidor, e o plágio, o crime movido pela traição.
Minha atividade como professor universitário apenas intensificou esses sentimentos. Até muito recentemente não me era possível ler um trabalho de fim de curso sem pensar que o CHAT GPT talvez fosse, em realidade, o verdadeiro autor de um bom resumo sobre A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo ou uma sacada interessante em torno aos Conceitos Sociológicos Fundamentais, ambos de Max Weber, autor de minha disciplina obrigatória. E que, portanto, aquela aula que você demorou horas para preparar foi de muito pouca valia. A cara de pau dos estudantes chega a tal ponto que são capazes de lhe entregar um texto sem nenhum erro ortográfico, nenhum erro de conjugação pronominal e o mais absurdo: nenhum erro de concordância verbal ou nominal. E eu pergunto: que estudante universitário brasileiro, quiça do mundo, não carrega consigo os mais assombrosos erros de concordância? Um trabalho final sem nenhum erro de português é plágio deslavado, plágio de robô, profissional, digitalmente organizado contra os mestres.
Questões dessa natureza me tiravam o sono até bem pouco tempo. Mas aí veio o abalo em minhas convicções. Tudo começou quando descobri, admito que tarde para um homem com mais de quarenta, que nossos ídolos também erram… foi um murro na boca do estômago quando me disseram que Miles Davis havia levado, na mão grande, três canções compostas por Hermeto Pascoal no disco Live-Evil de 1971. E são as belíssimas “Little Church”, “Nem um talvez” e “Selim”. E agora? Eu estava, como se diz, entre a cruz e a caldeirinha. Não queria desonrar as lições de meu avô sobre o imperialismo yankee. Mas como viver sem o Kind of Blue? Aquilo doía fundo, em particular, pela cara dura de mal se dar ao trabalho de anglicizar o título das músicas. É óbvio que “Little Church” é “Igrejinha” e os demais títulos copiados só fazem aumentar a vergonha alheia. Magoado, estabeleci que só aceitaria ouvir Miles novamente por sugestão mecânica e direta do próprio Spotify, sem procurá-lo voluntariamente. Mas eu ouvia, pior, sabia que quanto mais ouvisse, mais a plataforma sugeriria as suas canções. Jamais consegui parar. Eu esperava horas por uma sugestão “neutra” da plataforma a favor de Miles, beirei ao que chamam de racismo às avessas, pois, trapaceando minha própria regra, eliminei todos os artistas brancos da pasta “minha biblioteca”. E o gesto impensado me levou o próprio Hermeto Pascoal, objeto de minha defesa. Essa experiência foi minha primeira contradição moral em matéria de plágio.
Mas a reviravolta definitiva veio semana passada quando um grande amigo, desses do peito, íntimo, docente de universidade importante no Rio de Janeiro, pediu a mim que corresse os olhos sobre um artigo seu, feito para publicar em grande jornal do país. Claro está que não revelarei seu nome mas para se ter uma ideia de nossa amizade digo apenas que fizemos longa viagem para Colômbia, que ali me presenteou com a edição espanhola organizada por Clara Ramas de San Miguel de El 18 Brumario de Luis Bonaparte de Karl Marx, um de seus livros favoritos, e que conviver no estrangeiro por mais de dez dias seguidos com alguém, dia e noite, é prova de verdadeira afinidade. Ele me enviou o arquivo por WhatsApp com a seguinte mensagem: “Se der pra ler, leia mesmo. O estilo precisa ficar o mais direto possível. A mídia não gosta de coisas elaboradas, conceituais demais. Tem que ser pá e pum. E estou revoltado! Aquilo foi um massacre. Um absurdo! Preciso me posicionar. Valeu pela força!”.
Não soube do que se tratava até ligar a televisão e ver uma cena de guerra no noticiário. Corpos enfileirados no meio de uma praça na Penha, alguns sem os dedos das mãos, a estimativa de mais de cem pessoas mortas pela ação da polícia, o governador declarando que a operação foi sucesso, uma mãe aos prantos dizendo que não aprovava a vida do filho no crime mas que o queria preso, julgado, e não assinado no meio de uma mata. Entendi que a coisa era séria e o pedido para ler o texto, urgente. Assim que tive uma brecha abri o arquivo. O texto tinha o formato de uma carta dirigida ao presidente da república, algo que achei tão apelativo quanto ineficaz. Mas o que me incomodou mesmo foi estilo algo arrastado, como se estivesse num tribunal. Ele tinha me dito que precisava se expressar do modo mais direto possível, que o jornal não publicaria doutro modo, e vinha com frases do tipo:
Mas que mancha de lodo cobre o país esta abominável matança. E não há remédio: o Brasil vai conservar essa mancha e a história vai registrar que semelhante crime social foi cometido ao amparo do estado de direito.
Era muito justo, mas a forma, irremediavelmente cafona. É certo que a situação pedia a quem fosse se manifestar publicamente sobre os acontecimentos uma gravidade respeitosa as circunstâncias. Mas acho que essas exigências também recomendam evitar os clichês de sempre nas discussões desses problemas: a “mancha”, o “lodo”, o “não há remédio”. Não consigo pensar a quem pode comover ou mesmo cativar uma retórica dessa natureza. E o pior é que não parava. Não era um momento isolado no texto aqui e acolá. Tomava sua prosa como um todo. Numa passagem, explicando as razões pelas quais escrevia aquele texto afirmava: “É meu dever: não quero ser cúmplice”. E seguia um parágrafo inteiro explicando essa posição. Coisa inacreditável para uma pessoa como ele relativamente acostumada a intervir na mídia. Um jornal te oferece no máximo algo entre 2 a 3 mil caracteres para tratar de um assunto, não há espaço para ficar explicando porque você quis escrever, isso você conta ao editor quando lhe oferece o papel. E mesmo do ponto de vista político a estratégia me parecia equivocada. Ele diz não querer ser “cúmplice” dos acontecimentos, mas a aprovação da operação policial passa de cinquenta por cento no Rio de Janeiro e em todo o Brasil. Uma formidável parte da nação não apenas é cúmplice do acontecido mas assim se deseja. Eu queria ajudá-lo, no entanto, além dos problemas de forma, era difícil localizar a quem aquele texto se dirigia exatamente.
Entretanto, conforme eu ia lendo o artigo, um período aqui, uma frase ali, começava a despertar em mim aquela sensação estranha de já ter visto aquilo, ou parte daquelas ideias, em algum lugar. Eu conhecia bem esse sentimento, era como ler um trabalho final escrito pelo CHAT GPT, é um pouco diferente, mas no fundo, ainda que você não possa provar a diabrura digital, a inautenticidade aparece cravada milimetricamente em cada parágrafo. A leitura avançava e quanto mais eu lia, mais subia aquele cheiro podre de coisa copiada a originalidade alheia, de plágio sem vergonha. E como fedia! Fedia entre as ideias, as figuras de linguagem, nas interrogações, nas exclamações, nas reticências e mesmo nas mais duras críticas às autoridades. Até que o criminoso se entregou nas seguintes linhas:
Eu acuso o Governador do Estado do Rio de Janeiro, Sr. Claudio Castro, como agente e mandante de uma operação policial que ao arrepio da lei e das instituições democráticas do país, foi inteiramente organizada com a intenção deliberada e objetivo prévio de matar cidadãos brasileiros sem direito a defesa ou julgamento. Eu acuso as autoridades da Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro de instituírem na prática e contra as leis da Constituição Cidadã de 1988, o exercício da pena de morte. Eu acuso a política militar do Estado do Rio de Janeiro durante os eventos de 28 de Outubro de 2025 no Complexo do Alemão e na Penha de não realizar um só ato no intuito da garantia da paz e da ordem mas como mais uma entre as facções criminosas que tem o dever entregar a justiça. E disso é prova a morte de pessoas inocentes, invasão de casas sem mandato prévio, prisões arbitrárias e a prática da tortura.
Eu acuso a imprensa brasileira de ser cúmplice de uma cultura de morte, de usar o medo, o racismo e a miséria de forma escandalosamente sensacionalista para ganhar dinheiro, de ameaçar a vida da população pobre ao difundir o senso comum de que a ilegalidade dos de baixo não merece julgamento, e sim, o assassinato sumário. Que à diferença dos ricos e políticos, as pessoas pobres, com antecedentes criminais, merecem morrer. Eu acuso a maioria dos políticos da esquerda brasileira de abandonarem a linha de frente pela descriminalização das drogas e desmilitarização das polícias por medo de perderem as eleições mesmo as custas de obterem mandatos inócuos. Eu acuso os ditos intelectuais progressistas das universidades que desrespeitam a luta histórica dos movimentos negros e periféricos pela justiça e a vida desqualificando suas reivindicações como “pauta identitária”, eu os acuso de serem um dos pilares estruturais dessa cultura de morte, da legitimação social da matança generalizada de pessoas pobres e negras. Eu acuso você, leitor, que aplaude o tiro na nuca, a degola de pessoas vivas, as mãos e dedos cortados, os corpos enfileirados, eu acuso você de não ser um ser humano.
Ao findar a leitura desses dois parágrafos gritei na minha mente: Te peguei canalha! Este é o J’Accuse, de Zola! Em certa passagem, o desleixo no copia e cola, ladeou acidentalmente Victor Ramos, Secretário de Segurança do Rio de Janeiro, com Varinard e Couard, “peritos” em caligrafia do famoso caso Dreyfus, taxando a todos com as mesmíssimas palavras: “seus pareceres enganadores e fraudulentos”. Mas havia algo que piorava e muito a mão boba do amigo carioca. O texto original de Émile Zola publicado em 13 de Janeiro de 1898, contra a prisão e condenação e injusta do capitão Dreyfus, devido à sua ascendência judaica, se demorava longamente em fundamentar com fatos e evidências, a notória corrupção do Estado Maior do Exército francês na condução do processo, para enfim, proceder suas famosas acusações. Meu colega docente, contra todos os princípios da ciência, não apresentava, em realidade, nenhuma prova consistente de suas acusações. E nem poderia, o caso era demasiado recente, não há boas condições para realização de perícia e, ao que parece, ninguém saiu vivo da mata para manifestar contraditório. Assim, se foi “crime social” como alegava, fora o crime perfeito. Fora que sua sugestão de que a matança visava beneficiar milícias e ganhar eleição trazia a marca inconfundível do destempero emocional e plagiando, qualificava tais intenções secretas como um “imperecível monumento de vossa torpe audácia”.
Que editor de jornal iria publicar um negócio desses? Nem toda a opinião do país era favorável aquela carnificina. Entretanto, mesmo a este público, o texto certamente desagradaria. Não apenas pela condenação do progressismo oficial dos partidos e da academia mas devido ao próprio estilo e ao plágio. O autor não era desconhecido, se classificava como pardo e, como tal, era negro. E foi buscar “inspiração” em escritor branco e, ainda por cima, francês? Como fica a questão do “lugar de fala”? O eurocentrismo tava estampado em cada linha da prosa assim como o evidente descompromisso com o letramento racial dos leitores. Se copiasse um Fanon, uma Lélia Gonzalez, permaneceria no erro, mas enegrecia a coisa, e caso descoberto, poderia argumentar alguma coerência política. Enfim, por qualquer ângulo que se observasse, o texto era redondamente impublicável, tanto pela forma como pelo conteúdo.
Porém não quero disfarçar com observações técnicas aquilo que mais me aborreceu: como aquele sacana foi capaz de imaginar que eu não conhecia um dos libelos mais famosos de toda a literatura mundial? Que ele incorresse no erro, tudo bem, eu já sofria com Miles, e poderia, com ainda mais razão, fechar os olhos ao delito de um amigo. Agora, a acusação de ignorância, entre professores universitários, é ofensa suprema e ele bem o sabia. Tomado pela raiva, sequer mandei mensagem, telefonei diretamente ao seu número. Eu estava pessoalmente ofendido, mas quando me atendeu, achei por bem falar em nome de toda a nação e indaguei: quem você pensa que é para enganar o país inteiro com uma cópia fraudulenta de Émile Zola? O ladrãozinho covarde disse que não podia falar no momento e me escreveria por mensagem e, quando o fez, aumentou minha ira: “Foi só uma colinha… eu praticamente só peguei o “eu acuso”. Tá todo mundo publicando… eu preciso soltar um texto. Faz pouco que gente como nós publica em jornal de grande circulação. Lembra o debate sobre as cotas? Só dava eles… Foque no essencial. O problema é que em poucos dias já se disse tanta coisa que tenho pouco a acrescentar. E o que digo, de certa maneira, todo mundo já sabe. Então não é tão mal. Me perdoe”.
Era um verdadeiro testamento de mediocridade intelectual. Se não tinha algo a acrescentar porque publicar? Se o que falava, toda a gente já sabia, qual a valia daquelas informações? A única coisa que acrescentava ao debate era o estilo, que em verdade não era seu, mas de Zola. Decidi romper com a amizade. E o gesto escolhido para sacralizar o ato no coração foi entregar o regalo que me deu na Colômbia para a biblioteca de minha universidade. Folhei o livro como para me despedir do amigo e li, uma vez mais, o primeiro parágrafo: “Hegel dice en alguna parte que todos los grandes hechos y personages de la historia universal aparecen, como si dijéramos, dos veces, Pero se olvidó de agregar: una vez como tragedia y la otra como farsa”. E isto me pôs a pensar: acaso a farsa demanda pensamento original? E a pergunta mudou inteiramente meu ponto de vista. Examinando bem aqueles eventos de 28 de Outubro estávamos, em realidade, num estágio “depois da farsa”. Houve a chacina de Vigário Geral (1993), Candelária (1994), Baixada Fluminense (2005), Fallet Fogueteiro (2019), Jaracarezinho (2021), Vila Cruzeiro (2022) e outros incidentes, considerados menores, que mal despertaram atenção pública. Aquele plágio contra a farsa histórica, contra o depois da própria da farsa, era uma espécie de negação da negação e, portanto, algo positivo.
Tais pensamentos me levaram a reavaliar o significado daquele artigo. Não aplaudo, em todas as circunstâncias, o roubo descarado de ideias, mas havia naquele texto uma forma superior de humildade intelectual. E meu ex-amigo a havia expressado diretamente: ele não tinha nada a acrescentar. Diferente do que intuí de primeira, isso não se devia à sua pouca imaginação. Olhando com cuidado os fatos da história e o episódio recente, ficava claro que nada se pode acrescentar quando já arrancaram quase tudo de nós, por dentro e por fora.
Esta nova perspectiva me incitou a uma segunda leitura do artigo que agora me parecia inteiramente original, sobretudo no que tinha de “cópia”. E isso era evidente quando eu o comparava com outros textos de mesma posição política. Meu estimado colega – voltei a tê-lo em conta – dizia claramente o que outros com estatísticas, avaliação da segurança pública, análise da desigualdade racial, exame da segregação urbana, da conjuntura política eleitoral, apenas esboçavam sem jamais conseguir dizer. Sua mensagem era precisa, e o fato de dizê-lo, com aquela ênfase, de modo simples e direto, tornava a peça original frente ao debate público. E isso se devia precisamente ao estilo e as palavras do libelo francês escrito no século dezenove. Em verdade, não havia no texto uma só transcrição mecânica do original, jamais se propôs a copiá-lo.
É provável que ao ler este relato publicado em jornal ou revista meu grande amigo tome a mim como mau caráter, que lhe assino embaixo, sem ao menos ter lhe dado devolutiva do artigo, não apenas as ideias como sua própria filosofia de composição textual. Peço que não se zangue comigo. Saiba que estamos juntos nessa barra pesada. Não fique prostrado na cama e nem perca a fé nas pessoas. Não te acanhe se for preciso chorar na frente dos outros. Erga a cabeça e não deixe de amar a cidade que escolheu para viver. Mire-se no exemplo daquelas mães enlutadas que contra todos os males de uma vida cruel e indigna insistem em ser pessoas honestas. Lembro-te, como um carinho, uma frase que Tom Jobim, apaixonado pelo Rio como você, surrupiou a Ígor Satravínski que certamente afanou de alguém. Só se pode roubar a quem se ama.
Matheus Gato é professor do Departamento de Sociologia do IFCH/Unicamp, coordenador e pesquisador do Núcleo Afro do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e coordenador do Bitita – Núcleo de Estudos Carolina Maria de Jesus (IFCH/Unicamp). É autor de O massacre dos libertos: Sobre raça e república no Brasil (Perspectiva, 2020).





