Torta

Torta

 

Por que Coluna Torta? Porque sou torta mesmo, gauche na vida em todas as escalas. E vou escrever essa coluna de maneira torta.

Tenho escoliose e um peito encavado que me presenteia com uma ponta de costela protuberante — o que me fez passar a adolescência inteira usando maiô no lugar de biquíni. Tenho um terceiro peito. Sou torta porque não consigo falar rápido sem cuspir e trocar as sílabas. Nasci e cresci em Fortaleza, mas já estou vivendo mais tempo longe de lá do que vivi. Não me sinto pertencente a nenhum lugar. Uma estrangeira híbrida em seu sotaque, formas de ver o mundo e autopercepção. Caminho pelo cinza.

Recentemente, rolando o feed do Instagram, vi Vera Holtz dizer: “Sou uma pessoa que vive em estado de emergência, sempre angustiada. Parece que nasci errado. Não tenho nenhuma relação com a civilização atual. Parece que nasci, olhei o mundo e disse: não gostei, mas tenho que sobreviver aqui. Por isso, sou deslocada. Não gosto da forma de como as coisas são conduzidas. Elas me agridem e me assustam, mas é aqui que vivo. tanta coisa que podia ser um pouquinho melhor. Mas as pessoas querem viver desse jeito? É estranho como as pessoas gostam de viver.” Subscrevo, Vera.

Não gosto de saber das descobertas sobre o espaço porque elas me angustiam. Não sei interagir socialmente sem um copo de bebida. Por isso não saio quase nunca de casa. Vida delivery. Trabalho em casa, como em casa, me divirto em casa. Meus amigos vêm me visitar.

Acho que essa é uma cicatriz que ficou da pandemia. Outra coisa que acho estranha, Vera. Como vivemos aquele apocalipse e não falamos mais disso? Você vê na literatura, no cinema, no teatro, aqui e ali, mas o trauma devastador por que todos nós passamos me parece meio difuso, sem um objetivo de compreensão. Sem um objetivo de justiça. Nosso presidente à época corria atrás de uma ema munido de um remédio para piolhos, ignorava os e-mails da Pfizer e arrancava máscaras de criancinhas. Uma doença terrível, insidiosa, que podia ser assintomática, mas ainda sim contagiosa. Setecentas mil pessoas mortas. Onde estão as consequências disso, Vera? A vastidão de covas abertas, a falta de oxigênio em Manaus, o palhaço macabro imitando uma pessoa com falta de ar.

Eu estava em casa, com duas filhas de dois anos, lavando casca de banana, pacote de arroz e caixa de sabão em pó, com um canal no dente. E a dentista bolsonarista insistia em me tratar com o nariz sobressaindo da máscara de pano da Minnie. Isso porque sou privilegiada e tive o luxo de poder ficar resguardada em casa com minha família.

Mas fiquei mais torta ainda. Durmo errado, acordo errado, fumo errado, bebo errado. Parece que depois da pandemia as coisas entortaram mais. Envelheci dez anos em três, quatro, não consigo mais lembrar direito quanto tempo aquele pesadelo durou. Será que é isso? Queremos esquecer e bola pra frente? Estou com a Vera: “É estranho como as pessoas gostam de viver”.

Mas aí fui ao teatro e é justamente lá o lugar no mundo onde me sinto menos torta.

Vi a última apresentação de Avenida Paulista, uma espécie de musical dirigido pelo genial Felipe Hirsch. Com textos de Guilherme Gontijo Flores, Juuar e Caetano W. Galindo, e com canções inéditas de vários artistas, desde Negro Leo, Jards Macalé, Kiko Dinucci, Juçara Amaral, Tulipa Ruiz, Arnaldo Antunes e Nuno Ramos. Vi de maneira torta, claro. Na primeira fila, o que me impossibilitou a apreciação do cenário majestoso assinado pela Daniela Thomas e a iluminação deslumbrante de Beto Bruel. Mas sou assim mesmo, quero estar fronteiriça, quase dentro do palco, quero ver de perto os vincos nos rostos dos atores. Semi-atriz.

Saí de lá na própria Paulista e foi como se estivesse flutuando. Não estava mais torta, cada encaixe da minha coluna cervical em seu lugar certo.

Sou tão torta que não trabalho com teatro, que para mim, depois da música é a expressão de arte mais sublime. Algo de familiar justifica isso: quando era criança, frequentava os ensaios das peças de minha mãe, que era atriz.

Estou terminando a leitura de Batida só, de Giovana Madalosso, que é uma amiga torta como eu. E seus personagens são todos tortos, assim como sua escrita audaz e inovadora. Cheia de voos malucos como uma pipa no céu.

O frio me deixa mais torta ainda. Com a idade avançando, sinto doer os ossos de tanto frio, e daí me veem os moradores de rua que vergam mais ainda minha coluna combalida.

O que me serve de consolo é saber que não sou a única torta me arrastando por aí, poderíamos nos unir mais, nós, os tortos. E criar uma civilização mais torta. Nem a Terra é uma esfera perfeita. Mas não tenho muitas esperanças neste mundo necrocapitalista. Nessa esquerda cujo modus operandi de grande parte é o cancelamento, a desumanização do sujeito. Mentira, guardo uma esperançazinha aqui, os eretos é que já desistiram de mudar o mundo e caminham conforme a toada mórbida. Eles que vivem em um ritmo de consumo louco, carregando como amuleto a indiferença, a meritocracia e Deus. Que Deus é esse? A pergunta que me faço todos os dias apesar de ser agnóstica e respeitar todas as religiões. Quase todas.

Deixe o seu comentário

Dezembro

Artigos Relacionados

TV Cult