Linguagem é poder
Reprodução
Uma palavra não é só um veículo de significado. Embora seja uma parte essencial da comunicação humana, a linguagem não é uma ferramenta imparcial. Ela está ligada à dinâmica do poder e afeta a forma como as pessoas e os grupos o exercem, criam estruturas sociais e mantêm hierarquias.
Poder significa ter a capacidade de influenciar, gerenciar ou remodelar as atitudes, os comportamentos e as ações dos outros. O poder político, o poder econômico, o poder social e o poder cultural são apenas alguns exemplos das muitas maneiras pelas quais essa influência pode surgir. Isso inclui a coerção, mas também tipos menos óbvios de controle.
Não existem dúvidas de que indivíduos e comunidades podem estabelecer domínio, sustentar hierarquias sociais, projetos coloniais e manter sistemas de poder por meio de escolhas linguísticas que refletem e moldam nossa realidade social.
Mas o que ocorreria se a linguagem fosse descolonizada?
Na cosmologia de muitos povos tradicionais, por exemplo, a existência de um ser humano depende de seu meio, tanto quanto da capacidade de seus pulmões de respirar. Um rio, portanto, também chora, uma árvore sente dor e uma lua sorri. Por essa forma de consciência, o que então seria um genocídio?
Pela definição aceita no direito internacional, o crime pode ser designado quando há uma tentativa deliberada e a intenção de destruir por completo ou de forma parcial um povo.
Mas um povo precisa ser aniquilado fisicamente para que ele deixe de existir? Ou essa seria a definição de um colonizador?
Quando não há fronteira entre a terra e o corpo na visão de povos tradicionais, o próprio significado de sobrevivência é outro. A terra não é de onde saem os recursos para a sobrevivência. Ela é a existência, tanto quanto o coração. Envenenar um rio com mercúrio do garimpo é contaminar o fluxo sanguíneo.
Assim, a morte de um povo é também social quando sua teia de relações deixa de existir, inclusive com os seres não humanos. Foram essas relações que definiriam aquela cultura. Definem a relação entre gerações e desenham sua história.
Pertencer não é apenas uma dimensão ligada ao idioma que se fala, ao deus para o qual fazemos nossas homenagens ou a conexão estabelecida no grito conjunto do gol. Pertencer é existir nesse contexto de relações com o meio ambiente.
Neste sentido, então, é urgente considerar a destruição dos rios, animais e árvores como parte de um genocídio.
Uma das ofensivas diplomáticas no Tribunal Penal Internacional Haia é a de tentar qualificar tais crimes como ecocídio. Mas, uma vez mais, o arcabouço ocidental e cartesiano de pensamento posiciona os seres humanos de forma hierárquica acima da natureza.
Teriam os indígenas do povo Yanomami morrido de fome se, antes, não tivesse acontecido uma ruptura da relação entre seus corpos humanos e terrestres?
Jair Bolsonaro, ao usar a máquina do estado para promover tal destruição dessa rede de relações, queria um Brasil sem indígenas. Não necessariamente sem os indivíduos. Mas sem um povo.
Sua ação e suas consequências, hoje, nos obrigam a repensar o conceito de crime no século 21 e assumir uma nova definição do genocídio. Desta vez, descolonizado.
A ruptura social que vivemos hoje não é estabelecida pelas armas ou por uma intervenção militar. Mas, antes, pela linguagem. E pelo controle de seus significados.
Se na última década vimos a extrema direita desembarcar com a ambição de criar um novo mundo, o projeto passa necessariamente pelo controle da narrativa.
Assim, a linguagem é poder.
Em inglês, húngaro, espanhol, alemão ou português, o termo “liberdade” passou a ser uma espécie de refrão de movimentos de extrema direita no mundo. Um slogan capaz de mobilizar milhões de pessoas numa suposta luta contra o suposto “totalitarismo” que se estabeleceu em sociedades ocidentais.
Poderosa, a palavra não fica de fora de um só discurso de bolsonaristas, trumpistas ou de movimentos radicais da Europa.
Nos meses que antecederam à eleição nos EUA, a campanha de Kamala Harris deixou claro que entrou na briga por acabar com o sequestro do termo e reivindicar que ele seja usado pelos democratas. Prova dessa intenção é a escolha de sua trilha sonora para suas entradas em palcos e comícios, baseada na canção “Freedom (Liberdade)”, um hino de contestação de Beyoncé.
A opção musical não ocorreu por acaso. Se nos últimos anos a extrema direita sequestrou o termo, ela também promoveu uma manipulação de seu significado. Durante a pandemia da covid-19, a palavra foi instrumentalizada para dar ímpeto e legitimidade ao cidadão que se recusasse a usar máscara, a se vacinar ou a romper o lockdown.
Em 2023, o bilionário Elon Musk colocou nas redes sociais uma foto de um boné com a frase “Make Orwell Fiction Again” (Faça Orwell ser Ficção de novo), numa alusão ao lema de campanha de Donald Trump, Make America Great Again.
Tratava-se de uma convocação para que fosse colocado um fim às realidades distópicas retratadas nas obras do escritor George Orwell. Nelas, são denunciados os avanços do autoritarismo, a vigilância governamental e a erosão gradual das liberdades civis na sociedade contemporânea.
Em seu livro “1984”, por exemplo, Orwell traça os contornos do que seria um regime totalitário, capaz de controlar o cidadão pela propaganda, desinformação e vigilância.
Manipulando o sentido que Orwell queria dar, Musk e a extrema direita passaram a comparar os atuais governos ocidentais e democrático com a opressão descrita pelo autor. Eles, portanto, estaria “libertando” a sociedade da opressão.
A suposta luta pela liberdade também passou a ser uma bandeira da extrema direita ao defender que todos possam dizer o que bem entender, sem limites. Nenhum tratado internacional define liberdade de expressão dessa forma. Mas o debate passou a alimentar as narrativas de grupos radicais, acusados de querer essa liberdade para poder disseminar desinformação e ódio.
Para esses grupos, existe um “complexo industrial de censura” por parte das elites e organizações “globalistas que estaria ameaçando a “liberdade” do cidadão comum de dizer o que ele pensa.
Recentemente, a chegada aos cinemas de um filme apoiado pelas alas mais conservadoras também ampliou a guerra cultural pela definição do termo. Sound of Freedom (“Som da Liberdade”) conta a história de um ex-agente federal que resgata crianças da exploração.
A produção cristã virou um sucesso de bilheteria nos EUA. Mas passou a ser denunciado por difundir teorias de conspiração. Pouco importa para Donald Trump, que chegou a organizar um lançamento do filme na Flórida.
Denunciados por alimentar a desinformação, o grupo de extrema direita QAnon também abraçou o filme como peça de sua campanha de promoção de mentiras e teorias conspiratórias. Uma das narrativas preferidas do movimento é a de denunciar um suposto esquema mantido por elites de todo o mundo para sequestrar, abusar e matar crianças. Delas seriam retiradas uma substância que seria usada como um alucinógeno “dez vezes mais poderoso” que a heroína.
Não é de hoje que os democratas cederam o uso do termo aos republicanos. Nos anos 80, Ronald Reagan transformou a palavra numa plataforma contra a União Soviética, numa defesa da liberdade de mercado e da redução do papel do estado.
Mas a radicalização dos republicanos ampliou esse sentimento de perda por parte do campo democrata. Por dois meses, a campanha de Harris faria uma ofensiva para resgatar o lema que já foi central no passado para o partido.
A Convenção Democrata explicitou isso, com direito a uma explicação detalhada por parte do então candidato à vice-presidente, Tim Walz: “Liberdade. Quando os republicanos usam a palavra liberdade, eles querem dizer que o governo deve ser livre para invadir o consultório de seu médico. As empresas devem ser livres para poluir seu ar e sua água. E os bancos devem ser livres para tirar vantagem dos clientes”, disse.
“Mas quando nós, democratas, falamos de liberdade, queremos dizer a liberdade de ter uma vida melhor para você e para as pessoas que você ama. Liberdade para tomar suas próprias decisões sobre cuidados com a saúde. E, sim, a liberdade de seus filhos irem à escola sem se preocuparem com a possibilidade de serem mortos a tiros no corredor. Tim Walz, candidato a vice.
A redefinição ainda contou com cartazes espalhados pelo público em Chicago, além de um vídeo mostrando cenas de liberdade, entre eles o desembarque de soldados americanos durante a Segunda Guerra Mundial para libertar a Europa, os movimentos pelos direitos civis nos EUA e Black Lives Matter. O narrador do vídeo ainda reivindicava aos democratas o papel daqueles que mais “amam a liberdade” e “lutam por ela”.
Tampouco foi por acaso que, em seu discurso na Convenção Democrata, Harris tenha insistido sobre a questão do aborto. A mensagem ia muito além da situação da mulher. Tratava-se de um recado sobre o que pode ocorrer quando o estado coloca em risco a liberdade de escolha das mulheres em todo o país.
Sua campanha fez questão de ecoar o debate para além, alertando sobre o que significaria um novo governo Trump para as liberdades fundamentais.
Todos sabemos o resultado. Mas o que a campanha explicitou foi a transformação da linguagem em mais um campo da disputa pelo poder.
De fato, a transmissão da palavra também passou a ser algo contencioso. Hoje, sabemos que a mentira mata, o ódio alimenta a violência e a desinformação ameaça a democracia.
A realidade é que pessoas como Elon Musk são proprietárias de uma das armas das mais poderosas da nossa geração. Ela tem a capacidade de conectar as pessoas e criar um sentimento de comunidade. Mas ela também pode ser o veículo de crimes atrozes.
Assim que a aquisição foi completada, houve uma explosão de mensagens de ódio em sua nova rede social. Nas doze horas seguintes à compra de US$ 44 bilhões, 4,7 mil mensagens de ódio foram publicadas a cada 60 minutos em sua rede, mais de quatro vezes a taxa nas doze horas anteriores. Enquanto isso, o uso de expressões racistas saltou em 400%.
Musk demitiu todos aqueles que propunham mediar essa violência e reinstalou 62 mil contas que tinham sido banidas, inclusive de neonazistas e de Trump.
Musk se apresenta como um “absolutista da liberdade de expressão”. Ela ainda desmontou a equipe que estava examinando a incorporação de questões éticas na elaboração dos algoritmos e em inteligência artificial. Tão preocupante quanto essas medidas foi ler os aplausos de Donald Trump: “eu amo a verdade”.
Se há um projeto político autoritário por trás dessa ofensiva do uso da linguagem, que seja dado o nome correto aos fatos: crime. Se há um projeto de ganância financeira, que também seja dado o nome adequado: imoral.
A liberdade de expressão não é um livre-trânsito. A disseminação viral de desinformação prejudicial, como a verificada durante a pandemia de covid-19 em relação às vacinas, resulta em danos no mundo real.
Nada disso é novo, ainda que tenha recebido um impulso inédito diante da dimensão do poder das redes digitais.
Ao longo da história, o processo de transformação da oposição em inimiga segue certos padrões, abrindo espaço para o uso da força contra quem pensa diferente. Mas muito antes de um primeiro disparo, a construção da legitimidade do ódio passa pela linguagem.
Em uma sociedade onde grupos diferentes co-habitavam, iam às mesmas escolas, compartilhavam alegrias e dores, a operação de limpeza étnica em Ruanda não começou pelas machadadas. Mas por transformar o outro em outro. Por convencer que seu vizinho era seu inimigo e retirando sua humanidade. Por fim, retirando sua vida.
Num estudo realizado na Universidade de Harvard, os especialistas cruzaram dois dados fundamentais sobre os momentos que antecederam o genocídio de 1994 em Ruanda: o número de assassinatos em cada um dos vilarejos espalhados pelo país e a força da frequência de uma das rádios locais para chegar aos aparelhos daquela população.
O resultado, no país das “mil colinas” e com uma topografia especial, foi assustador: em locais onde a sintonia era boa, os massacres foram terríveis. Onde a rádio não pegava bem, a população foi em parte poupada.
Em um país com baixa circulação de jornais, poucos aparelhos de televisão e taxa elevada de analfabetismo, o rádio era o meio dominante para o governo entregar mensagens à população. Nessa estratégia, surgiu, antes do genocídio, a estação Rádio Television Libre des Mille Collines (RTLM), que liderou os esforços de propaganda, transmitindo mensagens inflamatórias que pediam o extermínio da minoria tutsi.
O ódio, portanto, era ensinado e tinha suas justificativas. A estação de rádio, por exemplo, alegava que a violência preventiva era uma resposta necessária para “autodefesa”. As declarações inflamatórias mais comuns consistiam em relatos de atrocidades por parte dos rebeldes tutsi, alegações de que estavam envolvidos em uma conspiração e que queriam poder e o controle sobre os hutus.
“A linguagem utilizada nas transmissões era desumanizante, pois os tutsis seriam frequentemente chamados de inyenzi, ou baratas”, diz o estudo.
De fato, a RTLM disse aos ouvintes em Ruanda em 4 de junho de 1994 que os Tutsis deveriam ser exterminados. “Veja a altura da pessoa e sua aparência física”, disse o jornalista da RTLM, Kantano Habimana, “Basta olhar para seu nariz pequeno e depois quebrá-lo”, recomendou.
Um dos argumentos foi de que, em Ruanda, a rádio teve um efeito de persuasão direta ao “convencer alguns ouvintes de que a participação nos ataques aos tutsis era preferível à não participação”. Além disso, também difundiam informações de que o governo “não puniria a participação na matança de cidadãos tutsis ou a apropriação de sua propriedade”. Era a ideia de anistia.
Os resultados, portanto, mostraram que RTLM teve um efeito direto na participação em aldeias com acesso às transmissões. Onde havia cobertura de rádio houve um aumento de 12 a 13 por cento na participação na violência total. O estudo ainda estima que cerca de 50 mil pessoas foram assassinadas como resultado do trabalho da rádio.
Não por acaso, em 2003, o Tribunal Internacional para Ruanda condenou Ferdinand Nahimana, fundador e ideólogo da Rádio Télévision des Mille Collines (RTLM), Jean-Bosco Barayagwiza, membro do alto escalão do Comitê de Iniciativa da RTLM e Hassan Ngeze, editor-chefe do jornal Kangura, por genocídio, incitação ao genocídio, conspiração e crimes contra a humanidade, extermínio e perseguição. Ferdinand Nahimana e Hassan Ngeze foram condenados à prisão perpétua e Jean Bosco Barayagwiza foi condenado a 35 anos de prisão.
O caso foi o primeiro desde o julgamento de Julius Streicher, em Nuremberg, sobre o papel da imprensa numa corte internacional. Streicher conduzia a publicação anti-semita Der Stürmer durante o regime Nazista.
Na sentença que condenou os envolvidos no genocídio em Ruanda, o Tribunal afirmou:
“O poder da mídia para criar e destruir valores humanos fundamentais vem com grande responsabilidade. Aqueles que controlam tais meios de comunicação são responsáveis por suas consequências”.
O documento da sentença ainda traz diversos exemplos para justificar a condenação. Um deles foi uma entrevista de rádio transmitida no auge do genocídio, em 25 de abril de 1994. Naquele momento, Ferdinand Nahimana, falou da “guerra da mídia, das palavras, dos jornais e das estações de rádio”, que ele descreveu como um complemento das balas.
Ao condenar Nahimana, a juíza Navi Pillay disse:
“Você estava plenamente consciente do poder das palavras, e usou o rádio – o meio de comunicação com o mais amplo alcance público – para disseminar ódio e violência…. Sem arma de fogo, machete ou qualquer arma física, você causou a morte de milhares de civis inocentes”.
No caso de Hassan Ngeze, ele foi condenado por suas atividades de instigação, auxílio e cumplicidade em atos de genocídio, inclusive por escrever em sua publicação Kangura um chamado ao ato. A capa de sua publicação Kangura No. 26, uma só frase:
“Que armas devemos usar para conquistar os Tutsis de uma vez por todas?”. Ao lado das palavras, uma imagem de um facão.
“Você envenenou a mente de seus leitores, e por palavras e atos causou a morte de milhares de civis inocentes”, afirmou Pillay ao sentenciá-lo.
O ódio é ensinado e tem seu objetivo. O ódio como força política manipula e mobiliza. Mas o ódio também mata. Naquele momento ou no século 21 ultraconectado, a realidade é a mesma: linguagem é poder. E pode ser mortal.
Jamil Chade é escritor, jornalista, colunista e correspondente internacional na Europa há duas décadas.