Da arte de fulgir iluminuras

Da arte de fulgir iluminuras
(foto: Bob Sousa)

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“Se te pareço noturna e imperfeita
Olha-me de novo”.

Hilda Hilst

Das paredes, em cartaz no Teatro Oficina, é um espetáculo insólito. Sua originalidade e sua estranheza saltam aos olhos e ouvidos do espectador de imediato e provocam um discretíssimo abalo sísmico no solo de um certo tipo de terapia social convertida em experiência estética que vem sendo conduzida no teatro brasileiro contemporâneo. A peça não discursa sobre nada que não seja o impalpável, o absurdo, o lírico e o fantasioso – daí o estado de arrematados prazer e alegria ao qual ela lança a plateia em seus 80 minutos de duração. Não se sabe muito bem por que gostamos da empreitada (talvez até tenhamos algum embate com nossa consciência crítica a respeito disso), mas esse misto de peça, show, performance e recital provoca, parodiando o poeta Mário de Andrade, um encanto bem curioso: a gente principia gostando por amabilidade e depois continua gostando porque sente uma pura atração por tudo aquilo que está posto em cena. A chave do teatro, para as quatro intérpretes, também abre as portas da música, e não franqueia o acesso a nenhum resultado da razão. Todas elas sabem, como Paulinho da Viola, que “ninguém pode explicar a vida num samba curto”.

(foto: Bob Sousa)
(foto: Bob Sousa)

O texto de Letícia Coura se intitula Das paredes: cariátides e britadeiras.  Cariátide (do grego Καρυάτις) é a figura feminina esculpida em forma de coluna ou pilar de sustentação sobre a qual se assenta uma cornija ou uma arquitrave. Em grego, o sentido literal da palavra é o de “moça de Karyai”, antiga cidade da região do Peloponeso. Segundo o historiador e helenista húngaro Karl Kerényi, a cidade acolheu um famoso templo dedicado à deusa Ártemis. Manifestada como Ártemis Karyatis, a divindade se alegrava nas coreografias da aldeia com “aquelas cariátides que, em seu êxtase, executavam suas danças circulares, levando sobre as cabeças cestos de junco, fazendo parecer que fossem plantas dançando”. Como o trabalho de Letícia Coura está mais afinado com o delírio criativo de uma bacante do que com a discrição contemplativa de uma poeta parnasiana, rapidamente a palavra “britadeira” vem juntar-se ao termo “cariátide”, levando o nome da peça a transitar pelos domínios do paradoxo, senão do paroxismo.

(foto: Bob Sousa)
(foto: Bob Sousa)

Das paredes, assim, trata do feminino de um modo muito especial. Espraiado em muitas camadas de compreensão. Um feminino estatuário (jamais estatutário) que, paradoxalmente, em vez de dar sustentação a algum tipo de retórica – política, sociológica, estética, feminista –, fragmenta-a em pequenos pedaços, despejando pó de pedra, concreto, cimento e asfalto por sobre a cabeça dos espectadores, em caráter de lírica aspersão.

A costura dramatúrgica do texto se dá em nível de um sarau poético, quando, de tempos em tempos, um espectador é convidado a sair de seu lugar para tomar assento em um divã-vulva, localizado embaixo de uma das arquibancadas do Oficina, onde ingere uma pequena dose de beberagem alcoólica para logo depois recitar, com o devido afrouxamento dos nervos, um trecho da novela de Hilda Hilst vazada em linguagem poética Rútilo nada.

(foto: Bob Sousa)
(foto: Bob Sousa)

Das paredes é um espetáculo móvel, imaginativo, irreverente, livre de amarras, que sapateia muito inventivamente sobre os escombros da ordem burguesa – conservadora e patriarcal. Como experiência artística, tem a grande capacidade de mover o mínimo de nós, promovendo um brilho intenso que ofusca a coisa alguma. Aquela invisível existência, aquele tímido intervalo, aquele inalcançável orifício, aquela ínfima área de escape que há entre um tijolo e outro – convidando o espectador a pensar não na robustez de muros e paredes e sim na singularidade de cada bloco unitário, que pode tornar todo o conjunto vulnerável e vir até mesmo a derrubá-lo. O famoso verso, então, transforma-se em palavra de desordem estético-política: “O todo sem a parte não é todo”.

 

DAS PAREDES

Até 28 de julho
sextas e sábados, às 20h; domingos, às 19h;
sessões extra: segunda, 29 e quarta, 31, às 20h

Teatro Oficina

Rua Jaceguai, 520 – Bixiga – São Paulo (SP)
Duração: 80 minutos
Classificação indicativa: 14 anos
Ingressos: R$ 60, R$ 30 e R$ 20

 

Welington Andrade é bacharel em Artes Cênicas pela Uni-Rio, mestre e doutor em Literatura Brasileira pela USP e professor da Faculdade Cásper Líbero.

 

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Novembro

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