O professor doutrinador no imaginário bolsonarista

O professor doutrinador no imaginário bolsonarista
(Foto: Marcelo Camargo/AB)

 

Recentemente, discursando em um ato político pró-armas, em Brasília, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP) deu aos presentes os seguintes conselhos pedagógicos:

Prestem atenção na educação dos filhos. Tirem um tempo para ver o que eles estão aprendendo nas escolas e não vai ter espaço para professor doutrinador tentar sequestrar as nossas crianças. Não tem diferença de um professor doutrinador para um traficante de drogas que tenta sequestrar e levar os nossos filhos pro mundo do crime. Talvez até o professor doutrinador seja ainda pior porque ele vai causar discórdia dentro da sua casa, enxergando opressão em todo o tipo de relação.

O pensamento todo é muito bizarro, em forma e conteúdo. Imaginar que uma audiência composta por lobistas e militantes pela facilitação da posse e porte de armas precise de conselhos de alguém como Eduardo Bolsonaro para proteger os próprios filhos de algum modo que não seja a tiros, já é estranho. Para protegê-los de gente tão perigosa como professores desarmados e vulneráveis, parece-me um supremo exemplo de nonsense. Dessas coisas kafkianas que parecem ter escapado de uma trama literária absurda.

É difícil imaginar que um público de machões e fêmeas alfas casca-duras, que acha que portar armas resolve praticamente todos os problemas sociais, precise de algum outro conselho para proteger suas famílias além daquele consignado no provérbio latino “si vis pacem, para bellum” – se queres a paz, inclusive a familiar, prepara-te para a guerra, inclusive com um revólver na mão. Eduardo Bolsonaro, contudo, pondera haver outras ameaças insidiosas rondando os lares brasileiros, que nem tiro resolve, como a perigosíssima professora dos nossos filhos, figura ainda mais perigosa do que os traficantes de drogas.

Depois, somos apresentados à extravagante alegoria segundo a qual professores são como sequestradores, em primeiro lugar, mas querendo significar aliciadores, em segundo lugar. O importante é que tanto o nome “sequestradores” quanto a expressão “levar os nossos filhos pro mundo do crime” indicam delitos terríveis, de modo que a audiência presente ao ato deve ter levado instintivamente a mão ao cabo de suas armas automáticas ante cenário tão aterrador. A professora dos nossos filhos foi retoricamente transformada no professor doutrinador, esse híbrido de sequestrador e aliciador de crianças, a encarnação de todos os nossos medos.

No passo seguinte, o professor doutrinador é classificado na escala de ameaça social: possivelmente, diz o deputado, seja pior que o traficante de drogas. Imagino que a este ponto, no público presente, o dedo de apertar o gatilho tenha chegado a coçar. Traficantes de drogas são marginais desumanos e sem escrúpulos que enriquecem por meio da destruição dos outros; os professores que doutrinam os nossos filhos são marginais desumanos e sem escrúpulos de natureza ainda pior. O ensino nas escolas brasileiras chega, enfim, ao topo do ranking, mas do ranking dos crimes hediondos. Vejam só!

Para rematar, o deputado tem o cuidado de exemplificar um dos crimes praticados pelo professor doutrinador: a divisão dentro do lar, levando as crianças a enxergarem opressão nas relações que nele se estabelece. A sentença é meio rocambolesca e a lógica cai das alturas, uma vez que é o único exemplo dado para demonstrar por que razão o professor seria ainda pior que o traficante de drogas. De toda sorte, parece que o filho nº 2 de Bolsonaro quis dizer que é por causa do professor doutrinador que crianças e adolescentes irão constatar relações opressoras no interior da família. O que, evidentemente, segundo a lógica do deputado, é pior do que sequestrar crianças e aliciá-las para o tráfico de drogas, sabe-se lá por quê.

Eis, em síntese, a estranhíssima representação das relações pedagógicas nas escolas brasileiras, segundo o sombrio universo mental bolsonarista. Ah, dirão os defensores dessa esquisita doutrina, mas ele não falou de todos os professores, apenas do professor doutrinador. Está certo, mas como a profissão de professor doutrinador não consta nas listas de ocupações do Ministério do Trabalho, resta o fato de que o docente será classificado como doutrinador ou não em exclusiva conformidade com o gosto dos bolsonaristas. Que, como se sabe, são exímios em construir fantasiosamente bichos-papões para incutir na sociedade o medo e o pânico moral dos seus adversários, inimigos ou de qualquer grupo social que lhes pareça um obstáculo aos seus projetos de poder.

O professor doutrinador é um bicho-papão das fábulas da extrema direita bolsonarista e serve basicamente para sustentar a tese sorrateira de que os mestres que cuidam diariamente dos nossos filhos ensinam valores e princípios que não permite que os petizes facilmente aceitem o terraplanismo, o negacionismo histórico, a intolerância, o dogmatismo e o fundamentalismo de que precisam os ultraconservadores para que possam prosperar politicamente. Mas se examinarmos de perto em que consistiria a doutrina que a extrema direita considera malsã e perigosa, vamos encontrar basicamente os valores do humanismo, do iluminismo, do pensamento liberal e da democracia.

Claro, há também as distorções e a forçada de mão do pensamento de esquerda mais elementar e, ultimamente, do identitarismo; um comportamento comum em escolas e que infelizmente dá plausibilidade a muitos dos ataques da direita conservadora. Não se iludam, porém, que o problema é simplesmente este. O programa reacionário, decadentista, tradicionalista, autoritário dos ultraconservadores é fundamentalmente pré-democrático, pré-liberal e pré-iluminista. Atacam os professores, desqualificando o árduo, penoso, imprescindível e mal remunerado trabalho que prestam à sociedade, mas o problema da direita conservadora não é com eles, é com o Iluminismo. O professor – como, de resto, também intelectuais e cientistas – não passa do bode expiatório de que os ultraconservadores precisam para concentrar sua frustração secular com as Luzes. Querem uma revanche no século 21 para a revolução que perderam lá pelos séculos 17 e 18.

Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)


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