Sem anistia: o grito que ecoa há mais de 30 anos
(Foto: Juliana Barbosa / MST-PR)
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A intentona golpista de 8 de janeiro de 2023, realizada por apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro, foi sem dúvida um dos momentos mais sombrios da história política recente do Brasil. Os grupos extremistas invadiram e depredaram o Congresso, o Supremo Tribunal e o Palácio do Planalto, agrediram jornalistas e policiais e transformaram as sedes dos poderes em um cenário de guerra, com saques, destruição de propriedade pública e muita violência concreta e simbólica.
Esses ataques, contudo, não se iniciaram naquele domingo. Foram insuflados, incentivados e arquitetados ao longo de muito tempo por um grupo de pessoas descompromissadas com a verdade, com as instituições democráticas e com o povo, especialmente por meio de desinformação, discursos conspiratórios e de ódio.
E é justamente diante da clareza de que crimes foram cometidos e da série de dificuldades para a sua responsabilização que ressurge o grito do povo brasileiro: “sem anistia!”, rememorando os traumas de um passado recente de ditadura militar.
Do ponto de vista político, o “sem anistia!” representa o desejo de se investigar e responsabilizar os envolvidos. Ou seja, é um grito contra uma possível futura impunidade dos bolsonaristas envolvidos.
Juridicamente, o olhar é outro. Isso porque a anistia é o perdão oficial e geral de uma infração, delito ou crime cometido por um indivíduo ou grupo, com a consequente eliminação das sanções legais ou administrativas e está prevista na Constituição Federal. Pode ser decretada pelo Congresso Nacional e, posteriormente, sancionada pelo Presidente da República para extinguir a punibilidade para determinado grupo de pessoas que praticaram as condutas nela descritas, geralmente crimes políticos. Não é como o perdão e a graça, individuais e personalíssimos, mas relacionado ao crime.
É evidente que, ao menos o atual Governo Federal, está muito longe de agir nesse sentido, pelo contrário.
Entretanto, a questão que se traz à tona é outra.
O atual grito “sem anistia!” não está associado a este instrumento Constitucional, necessariamente. Embora manifeste uma contrariedade prévia a eventuais acordos, de bastidores ou não, que impliquem na ausência de responsabilização para parte dos envolvidos (especialmente aos mais graúdos como autoridades ou oficiais das Forças Armadas), também rememora o grande trauma que foi a Lei de Anistia, por meio da qual, ao final da ditadura, expressamente se abriu mão de apurar os crimes cometidos pelo então Estado brasileiro e, em nome de uma suposta pacificação do país, permitiu que nossa democracia já renascesse frágil.
A promulgação da Lei de Anistia no Brasil, durante o processo de redemocratização, criou uma antítese: por um lado temos a inauguração do Estado Democrático de Direito pela Constituição de 1988, que se funda no princípio da igualdade jurídica, da proteção de nossas instituições e na inviolabilidade dos direitos fundamentais e humanos e do modelo de Estado de Direito. Por outro lado, temos a anistia sendo utilizada para inviabilizar a busca por justiça e memória coletiva, permitindo uma política negacionista com relação ao que realmente foi a ditadura.
O efeito dessa contradição é, justamente, a perpetuação da violência que é duramente sentida até os dias de hoje, como se pode observar na recente fala da nova presidente da Comissão de Anistia, Eneá de Stutz e Almeida.
Ela afirmou que “essa postura negacionista com a ditadura significa o que a gente chama de ‘esquecimento recalque’: uma postura de fingir que nada aconteceu, o popular varrer a sujeira para debaixo do tapete. Qual é o resultado de todo e qualquer recalque? Violência”, em entrevista concedida à Folha de S.Paulo e publicada em 3 de fevereiro deste ano.
Segundo ela, ainda, “esquecer ou fingir que nada aconteceu no período da ditadura armou uma bomba-relógio, e essa bomba explodiu no dia 8 de janeiro”.
Ao anistiar nossos algozes, fomos privados do direito à verdade e seguimos, consequentemente, sujeitos à repetição dessas violências, de modo que os atos golpistas de 8 de janeiro se revelam consequência direta da forma com que lidamos com a nossa ditadura.
Afinal, foi em razão da Lei da Anistia que foi possível que, em 1999, um deputado dissesse que era favorável à tortura no Brasil. Também foi em razão dessa lei que foi possível que o mesmo deputado afirmasse, no mesmo ano, que o voto não mudaria nada no país, apenas uma guerra civil; ou que, em 2008 e 2016, ele dissesse que “o erro da ditadura foi torturar e não matar”.
Em razão dela que, novamente, esse mesmo deputado pôde dedicar seu voto, no golpe de 2016, ao Coronel Ustra, o maior torturador brasileiro e torturador da presidente Dilma. Essa mesma lei permitiu que tal sujeito continuasse no legislativo a dizer absurdos por anos, o que lhe deu ânimo para dizer muito mais, como, por exemplo, que não estupraria uma deputada porque ela “não merece”.
Somente porque não enfrentamos o que foi a ditadura militar, e não responsabilizamos os criminosos agentes estatais, é que pudemos, enquanto Estado, permitir que um sujeito abjeto como Bolsonaro passasse mais de 28 anos no Congresso, dizendo absurdos sobre a ditadura, sobre a democracia, sobre as mulheres, sobre os homossexuais, sobre o povo preto e, ainda assim, não tivesse seu mandato cassado. E pior, que ainda fosse impulsionado na corrida eleitoral por essas covardias e se tornasse Presidente da República em 2018.
Agora, após quatro anos de agressões e fake news, as consequências dessa postura chegaram ao mais drástico ponto: tentaram um golpe de Estado.
O grito que tem ecoado desde então não deve ser voltado apenas a uma possível impunidade dos atos.
É evidente que as pressões são importantes, contudo, o grito deve se voltar também para o passado, para os crimes praticados pelo Estado Brasileiro e que hoje sequer podem ser investigados por força da Lei de Anistia (sem mencionar que muitos dos crimes já prescreveram), ou do contrário, não superaremos o passado sombrio que nos trouxe até aqui.
Mas aqui vai uma notícia boa: a discussão ainda não morreu com a declaração de constitucionalidade da referida lei. Hoje, temos em trâmite no STF uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF nº 320-DF) que, entre outras coisas, busca a declaração de que a Lei de Anistia não se aplica aos crimes de graves violações de direitos humanos cometidos por agentes públicos na ditadura, o que também não se aplica aos autores de crimes continuados ou permanentes.
Os principais argumentos levantados nessa ADPF giram em torno do fato de que o STF não teria se manifestado, quando analisou a constitucionalidade da Lei de Anistia, a respeito do caráter permanente de alguns crimes cometidos, notadamente a ocultação de cadáver e de que, mesmo anos após a prolação da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Gomes Lund (Guerrilha do Araguaia) vs. Brasil que, entre outras coisas, condenou o Estado brasileiro a reparar às famílias e impôs a obrigação de investigar fatos, julgar e, se for o caso, punir os responsáveis pelas violações, seu conteúdo ainda não foi cumprido por nenhum dos poderes.
Além disso, aponta-se que, desde o julgamento dos criminosos nazistas em Nuremberg, os atos de terrorismo do Estado são qualificados como crimes contra a humanidade e, portanto, são insuscetíveis de anistia e prescrição, de modo que o Estado Brasileiro não pode invocar sua soberania nacional para descumprir sentença proferida por tribunal ao qual se vinculou, nem os princípios de direitos humanos reconhecidos como normas imperativas de Direito Internacional geral.
Evidentemente, a discussão suscitada é complexa do ponto de vista jurídico, mas traz consigo a esperança de que ainda dá tempo de refletir coletivamente sobre a importância de responsabilizar os algozes do DOPS e do DOI-CODI, ao menos os vivos, assim como fizeram os nossos hermanos ao término da sua ditadura, levando pela primeira vez na história os militares a responderem por seus crimes em um tribunal comum. História muito bem retratada no filme Argentina, 1985, indicado ao Oscar de melhor filme internacional em 2023.
O julgamento da mencionada ADPF terá, inegavelmente, um caráter simbólico de reconhecimento dos horrores praticados na ditadura, trazendo, pela primeira vez, uma mensagem clara: o Estado e a sociedade brasileiros não toleram o que ocorreu naquele período e não permitirão que ocorra novamente.
Não se trata, portanto, somente de responsabilizar os envolvidos na prática de crimes de Estado contra a humanidade, até porque, em muitos casos, isso nem seria mais possível, afinal muita gente já faleceu. Mais do que isso, é sedimentar na memória coletiva a gravidade daquele momento histórico, apresentando uma versão oficial – e verdadeira – dos fatos, para que nunca mais os esqueçamos.
Como pretendemos responsabilizar os golpistas de 8 de janeiro, se sequer conseguimos reconhecer, oficialmente, o que ocorreu há poucas décadas?
É preciso, então, ter a coragem para enfrentar o passado e, com isso, mudar o curso de nosso futuro. Afinal, nós, enquanto país, não tivemos essa coragem até hoje e é muito em razão disso que assistimos horrorizados ao 8 de janeiro.
Essa árdua tarefa, hoje, está nas mãos do Poder Judiciário e, em especial, do Supremo Tribunal Federal, que terá a difícil missão de julgar a necessária revisão da anistia do passado, garantir que os crimes cometidos pela ditadura possam ser investigados, para que, então, possamos superar de vez esse momento sombrio e evitar novos atentados à democracia e à soberania popular.
Ana Carolina Albuquerque de Barros é advogada criminalista, mestre em Direito Penal pela USP e pós-graduada em Processo Penal pelo Instituto de Direito Penal Econômico Europeu (IDPEE).
André Antiquera Pereira Lima é advogado criminalista, mestrando em Direito Penal e pesquisador pela PUC-SP e pós-graduado em Processo Penal pelo IDPEE.
Miguel Kupermann é graduando em direito na PUC-SP. Membro da Comissão de Cultura da OAB-SP, é associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e ao Instituto de Defesa do Direito de Defesa.