Esther e Benjamin

Esther e Benjamin

 

 

I

 

Quando seus olhos encontravam a imagem refletida no retrovisor, era difícil para Esther não se sentir especial. O rosto pequeno e anguloso saltava por baixo da armação dos óculos escuros, as maçãs se pronunciando com elegância. Ela passou levemente as mãos nas bochechas, sentiu a pele bem cuidada; desceu os dedos pelos cabelos, como se fossem um pente de cerdas largas. Os fios loiros soaram muito macios. Nada em seu corpo parecia dizer: você está morrendo. 

 

No banco do passageiro, Benjamin encarava a tela do celular fixamente, os ombros curvados para frente. Grande, desajeitado, tinha duas manchas róseas estampadas no rosto, como se sentisse muito calor. Era todo o pai: os cabelos ruivos com textura áspera, os olhos minúsculos de cor indefinida, contornados por rugas que o rosto de Esther sequer conhecia aos trinta e oito. Por conta do misterioso caminho da genética, o garoto herdou apenas a feiúra de Michel. Mas, enquanto o pai era extrovertido e encantador, um empresário bem sucedido e autoconfiante, Benjamin não se dava com números, tampouco com esportes, o que dirá com pessoas. Era péssimo aluno, não por desleixo, nem mesmo rebeldia. Esforçava-se bastante, falhava por incompetência.

 

Entre sua coleção de defeitos, uma qualidade notável: amava a mãe com reverência. Tudo o que ela dizia tinha para Benjamin peso de lei, como se estivesse na Torá. Quando Esther aparecia na sala de manhã, pai e filho já estavam a postos, sentados à mesa do café. Michel lia o jornal, Benjamin se concentrava no tablet. A cena era sempre a mesma: quando o garoto a via surgir no fim do corredor, iluminava-se inteiro e chegava a acertar a postura na cadeira. Mesmo sendo um menino feio e desagradável, Esther o amava ainda mais por esse olhar. Quando reconhecia a si mesma nas retinas de Benjamin, parecia mais alta.

 

Naquela tarde, no entanto, Esther não sentia nada. Olhava para o menino ao seu lado, amortecida. Benjamin lhe parecia apenas um parasita que a fez de hospedeira em uma época remota, sem que qualquer vínculo persistisse entre os dois. 

 

Foi quando avistou o café do qual tinham sido vizinhos. Mudaram para um novo apartamento há pouco mais de dois anos e desde então, raramente voltavam ao bairro. Esther notou que tinha errado o trajeto, como se a caminho do prédio antigo. Por um instante, o endereço atual lhe escapou, não sabia como voltar para casa. O café lhe salvou de uma cena constrangedora. Se continuasse por algumas quadras, teria tentado entrar na garagem que não era mais sua. 

 

Parou e deixou o carro com o manobrista, enquanto o menino descia devagar. Existia um pacto silencioso entre eles. Não era necessário perguntar se concordava em parar ali, se estava com fome, se tinha algum compromisso em seguida. A mãe simplesmente dirigia e estacionava. O menino aceitava como se fosse destino.

 

Benjamin também não perguntou por que tinham ido àquele centro médico. Tantas vezes a acompanhou em dermatologistas, nutricionistas e dentistas, até mesmo nas aulas de pilates. O enredo pareceu habitual. Aguardou na sala de espera enquanto jogava no celular. Quando Esther saiu da consulta e o chamou pelo nome, ele apenas levantou e a seguiu, como sempre fazia. Ao olhar para ela, não notou qualquer diferença. A mãe estava morrendo e o menino não percebeu.

 

No café, sentaram-se junto à janela. A mãe pediu uma xícara de chá. Benjamin quis suco de tangerina, pão de queijo e torta de chocolate. Enquanto ela comia pouco, o menino vivia faminto. Dizia a si mesma que o filho tinha apenas onze anos, ainda cresceria, poderia acomodar melhor as proporções, tornar-se um homem interessante. De todo modo, não estaria aqui para ver, então se o garoto quisesse se entupir de chocolate antes do jantar, não seria ela a impedir.

 

II

 

Esther gostava muito de etimologia e, em especial, da história do seu nome — do persa Stara e do latim Stella, significa, literalmente, uma estrela. Atribui-se ao nome a simbologia de luz, esperança, perfeição. A primeira Ester, sem H, foi rainha da Pérsia e nomeia um livro do Antigo Testamento, o “Livro de Ester”. Teria salvado os judeus de um massacre, fato que continua a ser celebrado anualmente no Purim. Os pais não poderiam ter acertado mais. 

 

Já Benjamin é “bem-amado”, “filho do lado direito”. Ben é filho; Yamin, mão direita. Saindo torto como se deu, só teria sentido se Deus fosse canhoto. No fim, o menino era chamado apenas de Ben. De fato, o apelido representava o seu único talento: ser filho. 

 

Esther, nascida numa família judia asquenaze, não conheceu uma fase ruim: foi um bebê louro e rosado, os olhos acesos, risonha e fácil. Crescendo, tornou-se uma criança inteligente e delicada. Na adolescência, a boa ventura prosseguiu. As pernas longilíneas e bem formadas, os ombros eretos como de bailarina. Nunca soube o que era espinha. Conheceu Michel muito jovem, aos dezoito, e se casou poucos anos depois. Seus pais não eram exatamente ricos, mas os de Michel eram muitíssimo, então foi como subir uma escada que a levava de um lugar bom a outro melhor. Amava o marido e era correspondida de forma dedicada. Sua vida até então havia sido um caminho de iluminação. 

 

Quando engravidou, enfrentou complicações inéditas. Antes, apenas dois ou três resfriados, episódios esporádicos de gastrite. Então, tonturas, sangramentos e internações. Precisou de repouso e cuidados. Apesar da diligência, perdeu o primeiro, o segundo e o terceiro bebês. Recebeu os abortos com pesar, mas não se debateu. Para quem nunca foi contrariada, suportou bem a nova condição. Quando já não esperavam, Benjamin veio. Contra todas expectativas, o menino nasceu forte e barulhento, braços e pernas roliças, uma cabeça enorme, quase um décimo do peso da mãe. 

 

Desde pequeno, Ben não se adaptava ao convívio social. Rodeado de gente ou apenas com a babá, ele chorava dia e noite, um choro estridente, que durou até o quinto mês. Nessa época, Michel fez uma viagem de negócios ao exterior e Esther ficou em casa com o bebê. A princípio, as avós vinham sempre visitá-los e se prontificavam a ajudar. Era pior: quando ela e o filho ficavam sozinhos, o choro cedia, o menino mamava e dormia bem, não dava trabalho algum. Era outro bebê. 

 

Quando se compadeciam dela, Esther esboçava um aborrecimento fraco, ainda que tomada pela exaustão. A verdade é que quando Ben não aceitava colo algum além do seu, era difícil para ela não se sentir importante. Ainda que parecesse filho de outra, tudo em seu comportamento gritava: essa é a minha mãe. 

 

III

 

No dia da sentença, ser asquenaze ganhou um novo sentido. A médica lhe explicou que uma parte das doenças genéticas são condições, digamos assim, democráticas, assombrando a todas as populações, sem distinção de sexo, cor e etnia. Algumas doenças específicas, no entanto, acometiam determinados grupos com maior frequência. Era o caso da sua família. A comunidade judaica, por razões históricas, manteve-se isolada por muito tempo, acabando por concentrar a incidência de doenças recessivas raras. É preciso herdar duas cópias defeituosas do mesmo gene, o que, em outro contexto, seria muito improvável. Não havia esperança de cura. 

 

Os termos clínicos pareceram uma língua estrangeira. As palavras se acomodaram com dificuldade, foram ganhando peso lentamente. No consultório, ela não chorou. Depois, no banheiro, deixou cair algumas lágrimas calmas, enquanto olhava para a imagem refletida no espelho. O que poderiam seus traços perfeitos contra um interior que se desfazia em silêncio? Enxugou os olhos azuis com delicadeza, retocou a base e o pó de arroz. Por sorte, o rímel era à prova d’água. Ben estava na sala de espera, o mundo de antes intocado. Esther carregava consigo a notícia capaz de destruí-lo. Nesse momento, sentiu que um abismo os separava para sempre.

 

IV

 

Ben estava tão compenetrado na torta que demorou para perceber que ela o encarava. Ao se dar conta, levantou o olhar e sorriu, os dentes sujos de chocolate. Esther sorriu de volta, genuinamente, e pediu um pedaço. O menino estranhou, a mãe não era de doces, mas pousou o garfo e lhe passou o prato imediatamente. Ela partiu um teco, levou à boca e soltou um ruído de aprovação. O garoto cresceu de tamanho, feliz por ter acertado no pedido.

 

O que seria de Benjamin sem Esther? O filho se apaixonaria pela garota errada, viraria motivo de piada entre os colegas, não tinha envergadura para sustentar um coração partido. Frente à frente com aquele menino frágil de unhas pequenas e queixo duplo, de súbito tudo fez sentido: Ben não herdou sua beleza, inteligência ou desenvoltura. Em compensação, o gene defeituoso que lhe passou, o único que gostaria de ter lhe poupado, nada podia contra o gene sadio do pai. A médica havia sido muito clara: sua condição era rara, uma exceção. Não apenas porque era preciso um par de genes iguais para que a doença se instalasse, mas também porque a evolução do quadro era atípica. Poucos pacientes de Gaucher chegam a ter como complicação tumores malignos tão graves. As estatísticas fizeram completo sentido: desde pequena, estava habituada a ouvir que era uma em um milhão.  

 

De outro lado, agora compreendia. Sequer seria preciso que um teste genético confirmasse. A banalidade do menino era incontestável, cristalina. Ben estava livre da maldição. 

 

V

 

No dia seguinte, Esther comunicou a ele sobre o acampamento de férias. Seriam três semanas numa fazenda. Garantiu, sorrindo, que seria divertido. 

 

Ben recebeu a notícia com entusiasmo, até saber que a mãe não o acompanharia. Nunca se separaram por mais do que um fim de semana, e a experiência tinha sido das piores. Perguntou repetidas vezes o que tinha feito de errado, por que ela não gostava mais dele, de onde tinha vindo aquela ideia de jerico. Para quem costumava aceitar tudo sem contestação, dessa vez, foi incansável. Chorou muito, prometeu que seria um filho melhor, repreendeu-se por todos os pecados imagináveis, chegou a ter febre de culpa. Esther se manteve firme, irredutível, por dias. Essa mãe cruel, Ben não reconhecia. 

 

Escute aqui, agora chega disso. Vá lavar o rosto, assoar o nariz, eu tenho uma surpresa. Vamos sair juntos, vou te mostrar.

 

O menino engoliu o pranto, esperançoso. Passou uma água no rosto, apertou o nariz contra a toalha, voltou rapidamente com a cara inchada. Esther pegou a bolsa e as chaves, Ben deslizou atrás dela. Desceram juntos até a garagem e entraram no carro em silêncio. 

 

Quando estacionaram, escutou o som de cachorros latindo, rosnando e brincando, esbaforidos. O menino olhou para a mãe. Sem rodeios, ela disse assim mesmo: viemos escolher um cachorro. O filho perguntou para quem, a mãe respondeu: para você. Nunca em onze anos os olhos desse garoto brilharam tanto. Michel não gostava de animais, mas teria que se adaptar. 

 

Posso escolher qualquer um?

 

A mãe assentiu e o garoto sempre indeciso dessa vez não hesitou. De imediato, se apaixonou por uma cachorra de médio porte, pelos longos e marrons, uma listra branca no meio da cabeça, olhos muito dóceis. 

 

Quando você voltar do acampamento, ela vai estar te esperando em casa.

 

A expressão de Ben murchou de imediato. Por um breve intervalo, pensou que a mãe havia percebido o sofrimento que lhe inflingira e agora tentava compensá-lo. Mas Esther disse que não tinha conversa, o trato era esse: ele poderia levar a cachorra, desde que fosse viajar. 

 

Voltaram para casa, o menino e a cachorra juntos no banco de trás. Ben mal cabia em si de excitação. 

 

Nos primeiros dias de acampamento, falava com a mãe sempre em tom choroso. Reclamava da garganta raspando, da cama pequena, do mau cheiro dos lençóis, da comida sem gosto algum. 

 

No sexto dia, Ben demorou para atender. Quando a ligação de vídeo finalmente se completou, estava muito suado, as bochechas de um cor de rosa flamejante, o cabelo grudado à testa, gotas escorrendo na lateral do rosto. A mãe afinal havia interrompido a brincadeira, estava caçando Pokémon com os colegas de acampamento. Precisava desligar.

 

Esther sentiu-se atrapalhada. Abaixou o celular e o colocou no braço da poltrona. Aos seus pés, a cachorra dormia tranquilamente com as patas de trás estendidas, o corpo colado ao piso. Podia ver as costas indo e vindo de acordo com a respiração. Imaginou a mesma cena, com o garoto no seu lugar na poltrona, alguns anos depois.

 

Na coleira ao lado, esperando pelo próximo passeio, lia-se o nome escolhido: Bina. Do hebraico, “entendimento, sabedoria, visão”. 

 

Esther agora sabia: tudo ficaria bem.

 

 

Fabiane Secches é psicanalista, crítica literária e doutoranda em Teoria Literária e Literatura Comparada na Universidade de São Paulo

 

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