SUStentar diante da angústia: rumos e arrimos entre a pandemia e a saúde pública
Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de dezembro de 2021 é “angústia”
Angústia. Por onde começar? Posso dizer que a angústia é uma presença constante na clínica contemporânea, em suas múltiplas dosagens e facetas. Nenhuma novidade, certo?
O que pretendo trazer de novo (tanto como novidade, quanto como repetição) são algumas considerações ainda experimentais sobre a emergência da angústia a partir de uma clínica plural construída a muitas mãos que sustentam a saúde pública brasileira. Ou seja, não tomei como índice da angústia a referência, digamos, standard da escuta individual em um consultório privado. De fato, este texto surge como uma caixa de ressonância da polifonia (senão, cacofonia) entre usuários e trabalhadores do SUS. Em outras palavras, é um traço de um coletivo que segue na tensão, na “corda bamba”, como equilibristas”, diante do fio da angústia nossa de cada dia, nos serviços públicos de saúde brasileiros. Vejamos alguns destes ecos que vem das Unidades Básicas de Saúde (UBS).
Como um escutador também inserido nas práticas públicas em saúde, apoiador de várias equipes e profissionais, para além da lida clínica direta com os usuários, tomo como meu contexto de prática, a atenção em saúde mental realizada em uma grande cidade do interior paulista. Neste campo de prática, tenho notado as incidências da angústia não apenas nos usuários do Sistema Único de Saúde, o SUS, como em seus trabalhadores.
No contexto da pandemia, outros medos e inseguranças afloravam, conjuntamente com a precarização do trabalho em saúde, que se misturava com um sentimento de pertencimento diante de uma causa pela saúde pública, ponto que indiscutivelmente colaborou para que o Brasil não caísse no caos total.
Noto que neste processo pandêmico, algumas marcas traumáticas ainda seguem nos exigindo um “tempo para compreender”, um certo atravessamento diante de perdas diversas. Sem dúvida, existe um enfraquecimento dos espaços coletivos, em detrimento de um reforço da lógica individualista, queixa-condutista de atendimentos em saúde. Lógica que, em certa medida, foi reforçada (inicialmente, como medida protetiva) pelo contexto emergencial de enfrentamento da crise sanitária perpetrada pela pandemia.
Vivemos ainda um momento bastante angustiante nos serviços, em que demandas anteriormente vistas nas Unidades Básicas de Saúde (UBS) voltam dilatadas ou mesmo modificadas pelas incidências da pandemia e seus impactos diretos e indiretos. Podemos perceber o aumento da sus-dependência com a fragilização da população, seja pela via do desemprego, seja por outras vias de reforço do desamparo estrutural dos seres falantes (como, por exemplo, a redução das ofertas de apoio advindas da seguridade social e dos suportes interssetorias, como da Rede de Atenção Psicossocial, a RAPS).
Nota, ainda, um desafio para as equipes de saúde, quando são defrontadas com o incremento nas demandas em saúde mental, muitas vezes pouco decifráveis inicialmente como “da ordem da angústia”, por estarem cifradas pelas necessidades de ordem básica: a vulnerabilidade abissal que se transfigura pelo retorno da fome, pelo incremento da violência intradomiciliar e pela desesperança que corrobora com a evasão escolar e a desmotivação generalizada diante do futuro. Marcas traumáticas a todo um tecido social, com repercussões em marcos civilizatórios antes tidos como superações já realizadas pelo Estado brasileiro. Ledo engano, ou fomos otimistas em demasia… Pouco importa, agora.
Em suma, em tempos de angústia, o pessimismo é um luxo, e definitivamente, nós que SUStentamos a saúde pública não a temos como uma opção factível! Aprendi provando na pele que, em certas doses, a angústia também movimenta, agita, transforma. Posso dizer isto das marcas que trago, que me mantem nesta aposta, em busca de uma práxis em defesa da saúde pública que oferte um cuidado em saúde mental inserido na lógica da atenção psicossocial, nos pressupostos democráticos e na promoção do saber-fazer com os sintomas em liberdade, sem excluir os usuários como protagonistas neste cuidado.
É difícil fazer conjecturas para longo prazo, mas acredito que a saúde pública, sobretudo no que concerne a saúde mental precisará de mãos atentas e fortes nesta reconstrução em tempo real. Precisará buscar nas próximas conferências de saúde mental novos “vagalumes” para barrar as respostas rápidas às demandas crescentes em saúde mental. Precisará expurgar os tão novos (quanto velhos) fantasmas dos supostos tempos áureos de uma psiquiatria brasileira que também precisa realizar um acerto de contas com sua faceta colonial e manicomial. Não podemos aceitar o verniz democrático, sobretudo quando falamos das patologias da liberdade, como nos lembrou Franz Fanon. No mais, seguimos remando, uma canoainha com seus remos já nos parece um lugar menos insólito.
Fabrício Donizete da Costa, 33, é psiquiatra e psicanalista em
Campinas, SP. Psiquiatra do Núcleo Ampliado de Saúde da
Família da Prefeitura de Campinas, mestrando em Psicologia
Social pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo
(IPUSP), membro do Laboratório Interunidades Teoria Social,
Filosofia e Psicanálise da Universidade de São Paulo (LATESFIP-
USP).