O muro e o fogo

O muro e o fogo
(Foto: Divulgação)

 

  1. Moinhos de vento e chips na cabeça

“Ele é o herói do Mesmo. Assim como de sua estreita província, não chega a afastar-se da planície familiar que se estende em torno do Análogo. Percorre-a indefinidamente, sem transpor jamais as fronteiras nítidas da diferença, nem alcançar o coração da identidade. Ora, ele próprio é semelhante a signos. Longo grafismo magro como uma letra, acaba de escapar direto da fresta dos livros. Seu ser inteiro é só linguagem, texto, folhas impressas, história já transcrita. É feito de palavras entrecruzadas; é escrita errante no mundo em meio à semelhança das coisas.”

O trecho acima bem poderia estar se referindo ao protagonista de Todos os cachorros são azuis, primeiro livro de Rodrigo de Souza Leão, ou do último, Me roubaram uns dias contados – romances em que o narrador se desdobra em dois, ou às vezes três e quatro outros personagens, todos nascidos do mesmo um umbigo linguístico: as alucinações do autor Rodrigo de Souza Leão, às voltas com internações em clínicas, diagnósticos psiquiátricos e crises com familiares, amigos e médicos.

Mas, na verdade, é Michel Foucault, em As palavras e as coisas, falando de Dom Quixote – este ser que, ao ver-se protagonista de um imenso romance, sai da vida para se tornar um personagem; e que, só ao se ver personagem, consegue um espelho para entender a si mesmo. É um procedimento análogo ao de Souza Leão em sua prosa: o autor carioca, assim como o triste fidalgo da Mancha, também era um melancólico que combatia moinhos de vento. No caso de Souza Leão, os moinhos eram quaisquer pessoas que se aproximassem. Num processo de contínuo espelhamento, seu protagonista se projeta em vários entes externos, a quem odeia, e a quem quer eliminar. Consegue, como Quixote, fazer um amigo – ainda que imaginário: Rimbaud, um interno que vive com ele em uma clínica psiquiátrica, e que, como Sancho Pança, é seu inverso (no entanto, em mais um espelhismo, na cela em que se ambienta o livro Todos os cachorros são azuis Souza Leão é o gordo, e Rimbaud, o magro).

“Dom Quixote é a primeira das obras modernas, pois que aí se vê a razão cruel das identidades e das diferenças desdenhar infinitamente dos signos e das similitudes: pois que aí a linguagem rompe seu velho parentesco com as coisas, para entrar nessa soberania solitária donde só reaparecerá, em seu ser absoluto, tornada literatura; pois que aí a semelhança entra numa idade que é, para ela, a da desrazão e da imaginação. Uma vez desligados a similitude e os signos, duas experiências podem se constituir e duas personagens aparecer face a face. O louco, entendido não como doente, mas como desvio constituído e mantido, como função cultural indispensável, tornou-se, na experiência ocidental, o homem das semelhanças selvagens”, escreve Foucault.

A história do romance é a história da loucura: o mais antigo dos romances, tido como o exemplar que fixou o gênero, é justamente um livro sobre um homem que tem alucinações, acredita piamente nelas, e as transforma em narrativas. No intenso e curto Todos os cachorros são azuis, o selvagem Souza Leão narra o princípio de seus surtos psicóticos: segundo ele, quando adolescente engoliu um grilo, que se tornou um chip em seu cérebro, um chip que ao mesmo tempo registra e difunde seus pensamentos. Então o narrador é um espião de si mesmo, sempre cometendo o crime de transparecer aquilo que lhe é mais íntimo; neste processo, os pais, os parentes e os médicos, ao tentar lhe administrar remédios, se tornam monstros, que querem arrancar do protagonista suas confissões mais escondidas. É um Mesmo que somente no processo de se  multiplicar em inúmeros Outros consegue sentir-se Mesmo.

“Engoli um chip ontem. Danei-me a falar sobre o sistema que me cerca. Havia um eletrodo na minha testa, não sei se engoli o eletrodo também junto com o chip. Os cavalos estavam galopando. Menos o cavalo marinho que nadava no aquário.
Ele tem um problema mental. Será que tem alguma sequela? No fundo deste meu mundo, lá no quarto escurecido por doses de Litrisan, veio um psiquiatra e baionetou uma química na minha celha esquerda. Enquanto outro puxava a minha banha, esticando e esticando para que não sentisse a injeção de Benzetacil (…)
Mamãe mal chega, mal vai.
Ele continua achando que engoliu um chip.
Ela diz que tudo começou há uns dez anos, quando eu achei que havia engolido um grilo.
Quantos grilos você me fez engolir, filho.
Minha mãe disse isso afagando meus lábios e me dando um beijo na bochecha. Por alguns segundos lembrei-me de algo que havia acontecido no dia anterior. Eu havia quebrado toda a casa com fúria gigantesca. Nunca mais tomo Haldol na vida.
Foi por você não ter tomado Haldol que você ficou assim, diz o chip.” [Todos os cachorros são azuis, p. 13]

Neste movimento, o protagonista vence os moinhos de vento exatamente enquanto os narra. “O problema não consiste em ultrapassar as fronteiras da razão, e sim em atravessar como vencedor as da desrazão: então pode-se falar de uma ‘boa saúde mental’, mesmo que tudo acabe mal”, rebateria Deleuze em Crítica e Clínica, em seu ensaio sobre o norte-americano Louis Wolfson – autor de Le Schizo et le langues, diagnosticado com esquizofrenia, só consegue escrever em francês. “Fim último da literatura: pôr em evidência no delírio essa criação de saúde, que é a uma possibilidade de vida.” Para Deleuze, a literatura, que é uma “saúde”, é um processo em aberto, ou seja, um devir, “uma passagem de Vida que atravessa o vivível e o vivido”, o porvir e o passado. Mas o devir é justamente um trâmite que nunca se fecha. “Devir não é atingir uma forma (…) mas encontrar a zona de vizinhança, de indiscernibilidade ou de indiferenciação (…) o devir está sempre ‘entre’ ou ‘no meio’”, reflete Deleuze em “A literatura e a vida”.

Tanto em seu primeiro livro, Todos os cachorros são azuis, quanto no último Me roubaram uns dias contados, o protagonista-narrador das ficções de Souza Leão é um sujeito-devir – um homem preso em um elevador que nunca sabe se está subindo ou descendo, nunca sabe se as portas vão ou não se abrir. Ele está preso consigo mesmo neste elevador, um elevador que também é ele mesmo. E a própria forma de seu texto é um devir, pois, emparedado entre prosa e poesia, prende a ação em jogos linguísticos – rimas, espelhismos, metáforas, trocadilhos, citações. Encerrado em uma construção mise en abyme, ao tratar de um sujeito cuja única tarefa é imaginar a própria narrativa que efetivamente conta, cai de si mesmo para dentro de si mesmo.

Em Me roubaram uns dias contados, narra-se a simples e labiríntica história de um sujeito, Weimar, que mora em um quarto cheio de espelhos e telefones, os “gozofones”, os quais usa para manter contatos sexuais com várias mulheres e atraí-las a seu covil – ou melhor, à sua ratoeira. Não sabemos, no entanto, se os atos sexuais são reais ou se são frutos da imaginação ultraonanista do autor, que é dependente de neurolépticos e filmes pornôs. Logo o quarto é populado por outros personagens: Weimar, Mental, Vegetal, Vertigem, Eu, Você, Ela, Van Gogh brasileiro, Sósia, Gregor, Joseph, Sandra Rosa Madalena. E Rodrigo, claro. São todos personagens com quem dialoga o autor, Rodrigo de Souza Leão, lagarta apaixonada pela sua forma de borboleta, que logo mais voltará a ser lagarta: uma contínua metamorfose em que a forma só é outra quando retorna a ser idêntica a si mesma.

“Agora vou poder escrever quantos eus quiser. Eu sou samba. Do crioulo doido. De uma nota só. O meu mundo se divide entre os dias em que como queijo duas vezes por dia e o dia em que só posso comer queijo uma vez ao dia, e ainda o dia que não tem queijo. São três dias diferentes. Sou um rato preso numa ratoeira. Um colibri sem asas. Um inseto. Um eu deslocado de tudo e todos. Mudo continuamente de segundo a segundo. As palavras aqui não são pensadas. São pesadas. Grama a grama. Pesam uma tonelada. Uma baleia. Um elefante. Eu não sou eu. Sou eus. Todos que estão aqui até agora. Todos os homens e mulheres que etão neste livro são eu: um deus. Estou em todos os lugares o tempo todo. Ao mesmo tempo em lugar nenhum. Ou em um lugar comum, feito José Agrippino de Paula.” [Me roubaram uns dias contados, p. 305]

Em A História da Loucura, Foucault propõe o famoso conceito do “prisioneiro da passagem”, situando o “louco” como o ser que não conseguiu fazer a passagem entre o delírio e a linguagem, e portanto ficou preso. O delírio, um meio aquático e caótico, não se ordenou do outro lado, e o louco ficou preso em um discurso que – ao contrário do que vulgarmente se traduz como surto – não “sai de si”. “Fechado no navio, de onde não se escapa, o louco é entregue ao rio de mil braços, ao mar de mil caminhos, a essa grande incerteza exterior a tudo. É um prisioneiro no meio da mais livre, da mais aberta das estradas: solidamente acorrentado à infinita encruzilhada. É o Passageiro por excelência, isto é, o prisioneiro da passagem”, escreveu Foucault.

“A terceira margem do rio é um exemplo de transleitura do rio. Por isso também desde o século XVII dizemos que os loucos estão ‘fora de si’. Hoje dizemos que alguém está ‘fora da casinha’. Em si é bom. Fora de si não é bom”, ironiza Christian Dunker em Reinvenção da intimidade. No ensaio “Solidão: modo de usar”, o psicanalista reflete como a maioria dos protagonistas de clássicos são heróis solitários e desterrados – Dom Quixote, Hamlet, Don Juan, Fausto. São evadidos, exilados, desnorteados, sem eixo. Ironicamente, os heróis de Souza Leão nunca saem do lugar: como o herói de Xavier de Maistre, suas viagens são sempre ao redor de seu quarto. Ele “sai de si” dentro de um quarto – seja o quarto da casa da família, seja a cela da clínica onde se interna. Neste ato de autoexílio, se desnuda aos olhos dos leitores. “O pior da prisão é nunca poder fechar a porta”, refletia Julien Sorel durante um dos maus momentos que atravessava em O vermelho e o negro. De fato: “o autoisolamento é uma experiência simbólica, não uma exclusão física”, escreve Dunker. “Pense no castigo que é a prisão e veja se já ali algum isolamento ou privacidade.”

Souza Leão, ao “sair de si”, encontra a si mesmo do outro lado, lutando contra chips indiscretos, mulheres insaciáveis, médicos horríveis, livros inumeráveis, remédios pesados e pacientes depressivos, assim como Cervantes tocava pacientemente o seu velho cavaleiro, que só se conseguira se realizar como seu verdadeiro eu, um guerreiro indômito, ao atacar moinhos de vento nos quais visualizava monstros.

Leia a íntegra aqui.

Ronaldo Bressane é escritor, jornalista e editor, autor de Mnemomáquina (2014, Demônio Negro) e Escalpo (2017, Reformatório), entre outros


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