Notícias de outras ilhas: Micheliny Verunschk
A poeta Micheliny Verunschk (Foto: Ricardo Bolognini)
Micheliny Verunschk é autora dos romances O amor, esse obstáculo (Patuá, 2018), O peso do coração de um homem (Patuá, 2017), Aqui, no coração do inferno (Patuá, 2016) e nossa Teresa – vida e morte de uma santa suicida (Patuá, 2014), projeto com patrocínio da Petrobras Cultural. Também é autora do livro Geografia íntima do deserto (Landy, 2003), finalista do Prêmio Portugal Telecom de 2004. O romance nossa Teresa – vida e morte de uma santa suicida foi ganhador do Prêmio São Paulo de Literatura 2015.
Para a seção “Notícias de outras ilhas” – em que poetas, escritores e tradutores sugerem leituras para o período da quarentena – indica um trecho de A queda do céu, de Davi Kopenawa, e poemas de Maria Gabriela Llansol e Ossip Mandelstam. A seção tem curadoria de Tarso de Melo. Leia os poemas e o comentário da poeta abaixo.
Considero A queda do céu, de Davi Kopenawa, o livro sagrado do Brasil, como o Mahabharata, a Torá e outros livros sagrados de outros povos. Todo ele é história, poema, aquilo que É. E sua forma poética, de um certo modo, se encontra com a poesia lírico-filosófica de Maria Gabriela Llansol, autora portuguesa falecida em 2008. Por fim, nos últimos dias tenho recordado esse poema de Mandelstam, talvez porque mais do que nunca, nessa pandemia, que é um caso de saúde pessoal, coletiva e política, somos chamados a confrontar a nós mesmos dentro do nosso tempo. Para refletir sobre esse momento, tenho voltado meu olhar para o século 20 (como bem queria o Angelus Novus revelado por Walter Benjamin) e nessa mirada têm me acompanhado o álbum Banga, de Patti Smith, o monumental romance de Elsa Morante, A História (que bem merece uma reedição), e a canção Walk on the wild side, de Lou Reed.
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Em todos os lugares onde vivem humanos, a floresta é assim povoada de espíritos animais. São as imagens de todos os seres que andam pelo solo, sobem pelos galhos ou possuem asas, as imagens de todas as antas, veados, onças, jaguatiricas, macacos-aranha e guaribas, cutias, tucanos, araras, cujubins e jacamins. Os animais que caçamos só se deslocam na floresta onde há espelhos e caminhos de seus ancestrais yarori que se tornaram espíritos xapiri. Quando olham para a floresta, os brancos nunca pensam nisso. Mesmo quando a sobrevoam em seus aviões, não veem nada. Devem pensar que seu chão e suas montanhas estão ali à toa, e que ela não passa de uma grande quantidade de árvores. Entretanto, os xamãs sabem muito bem que ela pertence aos xapiri e que é feita de inúmeros espelhos. Os espíritos que vivem nela são muito numerosos do que os humanos e todos os demais habitantes da floresta os conhecem!
Davi Kopenawa em A queda do céu, Companhia das Letras, 2016
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— Sim — digo-te, pousando as mãos nos teus joelhos: – Desejo encontrar alguém que me ame com bondade, e saiba ler.
— Alguém que queira ressuscitar para ti?
— Sim, alguém que tenha para comigo essa memória.
alguém que deixe espaços entre as palavras para evitar que a última se agarre à próxima que vou escrever
alguém que admita que a cartografia dos animais e da pontuação não está ainda estabelecida
alguém que eu possa ler diferentemente depois de me ler
alguém que dirá aos animais e às plantas que nem sempre serão servos
alguém que ao nos amarmos se reconheça de matéria estelar […]
Maria Gabriela Llansol em O jogo da liberdade da alma, Relógio D’Água, 2003
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A era
Minha era, minha fera, quem ousa,
Olhando nos teus olhos, com sangue,
Colar a coluna de tuas vértebras?
Com cimento de sangue – dois séculos –
Que jorra da garganta das coisas?
Treme o parasita, espinha langue,
Filipenso ao umbral de horas novas.
Todo ser enquanto a vida avança
Deve suportar esta cadeia
Oculta de vértebras. Em torno
Jubila uma onda. E a vida como
Frágil cartilagem de criança
Parte seu ápex: morte da ovelha,
A idade da terra em sua infância.
Junta as partes nodosas dos dias:
Soa a flauta, e o mundo está liberto,
Soa a flauta, e a vida se recria.
Angústia! A onda do tempo oscila
Batida pelo vento do século,
E a víbora na relva respira
O ouro da idade, áurea medida.
Vergônteas de nova primavera!
Mas a espinha partiu-se da fera,
Bela era lastimável. Era,
Ex-pantera flexível, que volve
Para trás, riso absurdo, e descobre
Dura e dócil, na meada dos rastros,
As pegadas de seus próprios passos.
Ossip Mandelstam em Poesia moderna russa, 2001, Perspectiva, tradução Augusto de Campos